EGP Entrevista com Eliseu Alves, o mentor da moderna agropecuária do Brasil

(fonte: site da Embrapa)

Em 2023, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) completará 50 anos. O Ementário de hoje tem a honra de entrevistar um visionário do setor público, o Dr. Eliseu Roberto de Andrade Alves. A entrevista foi feita por Eduardo Semeghini Paracêncio, servidor da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), e por José Eustáquio Ribeiro Vieira Filho, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e teve a colaboração de Paulo Campos Christo Fernandes, pesquisador da Embrapa, e de João Felipe Ribeiro, professor de Geografia do curso Damásio.

“O genial pai da Embrapa, e, portanto, da moderna agricultura do Brasil”, assim o ex-ministro Antonio Delfim Netto definiu Eliseu Roberto de Andrade Alves, que é mais conhecido e carinhosamente chamado por Eliseu Alves.

Eliseu Alves é engenheiro agrônomo formado pela Universidade Federal de Viçosa – UFV em 1954, obtendo mestrado (1968) e doutorado (1972) em Economia Rural pela Universidade de Purdue, nos Estados Unidos. Desde 1954, atuou no setor público nas áreas de extensão rural, de pesquisa agropecuária e de irrigação. Em todas as áreas com a qual trabalhou e se especializou, foi pessoa decisiva na concepção dos grandes projetos nacionais. Ajudou a consolidar a extensão rural no estado de Minas Gerais, sendo chefe do departamento de planejamento e avaliação da Associação de Crédito e Assistência Rural de Minas Gerais (ACAR MG), de 1955 a 1973.

Fundou e reconstruiu a área de pesquisa agropecuária no Brasil, criando a Embrapa, sendo diretor de métodos quantitativos e recursos humanos de 1973 a 1979 e diretor-presidente de 1979 a 1985. Na Embrapa, concebeu e executou o programa de pós-graduação da instituição, bem como descentralizou as unidades de pesquisa no território nacional, buscando foco nas áreas a serem trabalhadas e estudadas. Posteriormente, de 1985 a 1989, foi presidente da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) e secretário nacional de irrigação em 1989. Como presidente da Codevasf, criou o conceito do distrito de irrigação, pelo qual os projetos públicos passaram a ser administrados pelos irrigantes. Emancipou todos os projetos de irrigação, transformando diversas regiões em grandes polos exportadores de frutas.

Negociou empréstimos com o Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Governo japonês, permitindo uma expansão de mais de cem mil hectares de área irrigada no país. Concebeu e executou o programa de 1 milhão de hectares irrigados do final da década de 1980. De 1990 em diante, tornou-se Assessor da Presidência da Embrapa. Na esfera acadêmica, foi professor de estatística, microeconomia e política agrícola de cursos de pós-graduação em Economia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na Fundação Getúlio Vargas (FGV), na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP). Na FGV, ajudou a formular e a implementar uma pesquisa por amostragem que serviu para definir melhor as contas do setor agrícola.

Tem-se dedicado, nas últimas décadas, à pesquisa em política agrícola e em ciência e tecnologia. Ademais, tem dado assessoria a governos, na condição de consultor do BID, Banco Mundial e FAO. Destacam-se Venezuela, Paraguai e Equador. Tem atendido a convites de universidades, cooperativas, organizações de produtores e científicas para fazer palestras sobre a dinâmica da agricultura brasileira, tema objeto de toda a sua vida profissional. Eliseu Alves pode ser considerado como o grande líder brasileiro na construção da moderna agricultura tropical, um legado imensurável.

Com tamanha experiência profissional e científica, é importante, além de reconhecer este exímio profissional, buscar compreender mais detalhes como foi essa grande jornada de descobrimento da produção agropecuário no Brasil. Seguem as nossas perguntas ao doutor Eliseu Alves.

1 – Quais foram as inspirações para a criação da Embrapa?

Eliseu Alves: Olha, foram duas inspirações. A primeira foi que o Brasil tinha uma dívida externa enorme e que precisava de encontrar um jeito de pagar essa dívida, e a segunda era que, naquela época, a agricultura era desprezada e subiu de patamar, passando a ser considerada como setor que poderia salvar as contas externas do Brasil.

2 – Havia alguma instituição em outro país com o mesmo modelo da Embrapa?

E.A: Não havia nenhum modelo parecido com o da Embrapa. Que eu saiba não, não tinha nenhuma instituição com este modelo. O modelo normal naquela ocasião era de pesquisa dentro das universidades, o que foi proposto para a Embrapa e que foi rejeitado.

3 – Como o mestrado e o doutorado que o senhor fez nos EUA influenciaram na gestação da empresa?

E.A: Teve influência enorme, já que eu passei a entender que na realidade quem comandava a economia americana era a ciência. Se não tivesse cientista, não teria ciência. Se não abrigássemos os cientistas dentro de uma instituição de pesquisa, também não teria como trabalhar. Juntando esses pedaços todos, nós chegamos à conclusão, que não foi só minha, seria preciso renovar o DNPEA (Departamento Nacional de Pesquisa Agropecuária) e substituí-lo por uma instituição moderna, descentralizada e com controle completo dos cientistas.

4 – Quais foram os principais desafios para a criação e implementação da Embrapa na década de 1970?

E.A: Primeiro, tinha um mandato. Os militares eram muito claros e o Delfim Netto também. O mandato era transformar o meio rural brasileiro num grande exportador de alimento, porque a dívida externa estava matando o Brasil. Com isso, nós resolvemos criar a Embrapa, dando a ela um mandado de transformar o Brasil num grande exportador. Para a nossa sorte, esse mandato foi cumprido em vários governos, inclusive na gestão do Presidente Figueiredo, que deu grande apoio à Embrapa.

5 – Como foi a descoberta das principais limitações da agricultura naquele período?

E.A: Era conhecido que a agricultura brasileira tinha sido muito discriminada no período anterior e que não estava dando uma resposta adequada em grande parte em consequência dessa discriminação. O Delfim Netto mudou a política agrícola, passou a dar grande importância à agricultura e, com isso, a agricultura brasileira explodiu. O Delfim, que antes só acreditava no setor industrial, mudou de opinião, e passou a enxergar na agricultura uma grande arma para transformar o Brasil na grande potência exportadora de alimentos que é hoje.

6 – Como foi a utilização do conceito de inovação induzida na concepção da Embrapa?

E.A: Este conceito de inovação induzida era velho já naquela ocasião e era muito badalado nos Estados Unidos. A ideia básica é que as instituições públicas não tinham como escolher as prioridades de pesquisa e, com o conceito de inovação induzida, nós conseguimos criar um espírito pelo qual as instituições públicas passaram a ter uma grande importância na modernização da agricultura brasileira.

7 – Tem algum exemplo que o senhor poderia dar?

E.A: O exemplo é a Embrapa. Não tem outro exemplo que eu saiba. Tem-se o exemplo da Embrapa. De uma certa forma, o desenvolvimento da produção americana, com base na mecanização, é o 2° exemplo, e o 3° exemplo seria o crescimento da produção agropecuária japonesa através da inovação biológica.

8 – Como foi o trabalho de envio de centenas de brasileiros para fazer a pesquisa agrícola em universidades estrangeiras na década de 1970?

E.A: já era conhecido que sem cientistas competentes não tinha jeito de ter boa política de pesquisa e nem capacidade de inovar. Então, o que nós verificamos? Verificamos que era importante mandar os nossos cientistas para as melhores universidades do mundo, em grande parte para os EUA, e que esse cientista precisava, ao contrário do que acontecia no resto do mundo, ter um salário decente aqui no Brasil, para uma vez recebido mestrado e doutorado, voltasse a trabalhar no nosso País.

9 – A ênfase em capacitação foi essencial para o sucesso da Embrapa?

E.A: Foi essencial, mas sobretudo misturada com a ideia de que tinha que pagar bem o cientista. Com a grande ajuda do professor Delfim Netto, conseguimos um bom salário pelo qual era extremamente conveniente trabalhar aqui no Brasil.

10 – Qual foi a primeira grande entrega da Embrapa para a agricultura brasileira?

E.A: Nem foi da Embrapa, foi da Johanna Döbereiner (https://www.embrapa.br/johanna-dobereiner), que já estava lá no Rio de Janeiro, que já estava trabalhando, vamos dizer, quase que solitária, ela que na realidade ajudou a criar a fixação de nitrogênio.

11 – Explique um pouco melhor o que seria a fixação biológica de nitrogênio para o público mais leigo.

E.A: Existe o nitrogênio no ar. Isso é conhecido, entende? Tem uma bactéria que pega esse nitrogênio do ar e entrega para a planta. O que a Johanna fez foi melhorar essa bactéria, de modo que ela passasse a fixar a maior quantidade de nitrogênio no solo e, assim, permitir que, em grande parte, nossas necessidades de importação desse insumo estratégico diminuíssem.

12 – Há alguma medida em relação a isso, medida econômica do quanto que essa tecnologia representa?

E.A: Na ocasião, foi feita uma medida. Eu mesmo ajudei a mensurar. Somente essa descoberta pagava a Embrapa durante 10 anos.

13 – Como foi o desenvolvimento do Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados (PRODECER)?

E.A: O japonês tinha um problema. Eles não queriam ficar na dependência dos EUA para importação de alimentos do jeito que era. Então, resolveram ajudar o Brasil a se transformar num grande exportador de alimento e, assim, não ficar preso ao grande exportador tão somente.

14 – Na sua visão, quais foram os principais fatores que contribuíram para o sucesso do PRODECER?

E.A: O PRODECER era um programa japonês. O primeiro fator foi a vontade dos japoneses. O segundo é uma coisa que os japoneses têm, que é foco. Era preciso focar no Cerrado. Nós já estávamos focados no Cerrado. Com isso, eles deram uma mão muito grande no sentido de, não só focar pesquisa no Cerrado, como também criar um programa de extensão, que levasse as práticas ao conhecimento dos agricultores.

15 – Antes da criação da Embrapa, como que o Cerrado brasileiro era visto?

E.A: Vou contar uma história para vocês. Eu estive para comprar um pedaço de terra aqui (no Cerrado), eles pegaram e falaram: “Eliseu, tirando a beirada dos rios que tem um valor grande, o resto nós damos de graça para você”. E hoje, a terra é caríssima aqui no Cerrado.

16-Como o senhor avalia a transformação do Centro-Oeste brasileiro a partir da atuação da Embrapa?

E.A: A ciência mudou as relações de preço aqui no Brasil. Se eu tivesse adivinhado na ocasião, eu seria um homem rico hoje, porque eu iria investir em ciência e tecnologia e comprar terra barata e vender cara depois. Então, como eu não tive essa visão e nem esse sonho, eu não fui capaz de levar vantagem daquilo mesmo que eu estava ajudando fazer.

17 – Mas ajudou muitos brasileiros, não é mesmo?

E.A: Ajudou muito brasileiro e muita gente. Tem um colega nosso, que se chama Nuno Casa Santa, que uma vez me falou pessoalmente: “Eliseu, eu não conheço uma pessoa que tenha feito tão bem para tanta gente como você”.

18 – Tem alguns outros exemplos de conhecidos que você tenha aí que também se aproveitaram das oportunidades que foram criadas no setor?

E.A: Uma multidão. Agora eu quero ressaltar uma coisa: muita gente contribuiu para que isso acontecesse, não foi só eu não.

19-Na sua visão, o que garantiu a consolidação da Embrapa?

E.A: Cientistas competentes do nível do resto do mundo.

20 – Podemos dizer que em termos de pesquisa, estamos na fronteira do conhecimento?

E.A: Considerando a agricultura tropical, nenhuma dúvida existe sobre isso, quem sabe estamos na frente.

21 – A revista The Economist publicou recentemente uma matéria alertando para o fato de que o mundo estaria se aproximando de uma catástrofe no abastecimento de comida (https://www.economist.com/leaders/2022/05/19/the-coming-food-catastrophe). Qual será o papel do Brasil, na sua visão, na segurança alimentar mundial nos próximos anos?

E.A: Eu, na minha opinião simples, de um observador aqui sentado nessa salinha da minha casa, acho que quem está passando por uma crise muito grande é a The Economist.

22 – Por que? Explique isso melhor, por favor.

E.A: Porque ela não está trazendo novidade nenhuma, falando bobagem.

23 – Mas o Brasil poderá ajudar (a alimentar o mundo)?

E.A: O Brasil não poderá, já está ajudando a alimentar o resto do mundo.

24 – Pode explicar um pouco melhor a questão de produzir para o mercado doméstico e exportar o excedente e como isso influencia na dinâmica do desenvolvimento econômico brasileiro?

E.A: Você tinha uma dívida externa enorme para pagar. As exportações da agricultura em grande parte pagaram essa dívida externa e permitiram o Brasil acumular uma quantidade de reserva que colocou o País numa posição extremamente confortável em relação ao resto do mundo.

25 – Estimativas indicam que, até 2050, a população da África deverá duplicar, passando de 1,3 bilhão a 2,5 bilhões. O modelo da Embrapa de atuação é replicável em outros países do continente africano?

E.A: O problema de replicar o modelo é que tem que replicar o governo. E isso não é uma coisa fácil lá na África. Se você conseguir instituir um governo comprometido com a agricultura, com a ciência, é claro que a África tem toda condição de dar a resposta que o Brasil deu.

26 – Então o problema seria que hoje a África não tem as instituições necessárias para promover esse desenvolvimento?

E.A: Ela não tem essas instituições e, pior ainda, não tem essa vontade.

27 – Pode explicar um pouco melhor como essa vontade surgiu no Brasil entre os políticos e os cientistas?

E.A: Uma coisa muito simples. Tem um ditado lá na minha terra que diz que a necessidade que faz o sapo pular. No caso da África, na hora em que eles começarem a enfrentar a falta de alimento, eles vão criar vergonha e transformar os recursos deles, que são amplos, num verdadeiro paraíso de produção de alimento.

28 – Certa vez, eu escutei o senhor falar o seguinte: “a oportunidade é careca, difícil de ser agarrada”. Isso não pode acontecer com os africanos?

E.A: Pode não, isso já está acontecendo. É o seguinte, é tão careca e uma parte do cabelo foi arrancado pelos europeus, que não deixa a África se transformar em um grande produtor de alimento.

28 – O que podemos esperar da agricultura digital, o chamado agro 4.0?

E.A: Vai gastar o dedo das pessoas, apenas isso. Porque é o seguinte, a agricultura digital não tem diferença nenhuma da agricultura do meu tempo, apenas você usa um método diferente – o método digital para conseguir as coisas de uma maneira muito mais rápida.

29 – Em 2023 a Embrapa completará 50 anos. Na sua visão, quais serão os principais desafios da empresa nas próximas 5 décadas?

E.A: Enxergar bem o futuro, que não é fácil. Adaptar-se a esse futuro que foi enxergado, que foi visto, e sobretudo, formar gente competente, porque só gente competente é capaz de enxergar o futuro de uma forma positiva e adequada.

30 – Quais as suas principais conclusões nos estudos que o senhor tem feito sobre imperfeições de mercado e pobreza rural no Brasil?

E.A: No meu modo de entender, a pobreza rural é consequência das imperfeições do mercado. Uma das imperfeições de mercado é o método pelo qual a modernização chega às grandes fazendas e deixa os pequenos de fora dessa grande aventura que é a agricultura moderna.

31 – Como o senhor vê a percepção de conflito entre avanço da produção em novas áreas e a necessidade de conservação de partes estratégicas dos biomas no Brasil?

E.A: Eu não vejo conflito nenhum, porque o Brasil tem terra o suficiente para atender as duas coisas: atender o meio ambiente e atender a produção brasileira. O agricultor não é idiota. Não sendo idiota, é claro que ele vai conservar os seus recursos naturais, pois esta é a única forma de conservar valor e de garantir futuro para sua família.

32 – Aos 91 anos de vida e com um legado pessoal e profissional admirável, qual mensagem o senhor gostaria de deixar para as futuras gerações que farão pesquisa agrícola no Brasil?

E.A: Primeiramente, tenho que fazer uma pequena correção. Eu tenho 92 anos de trabalho, isso porque eu trabalho desde muito cedo na vida, já com a minha família e o meu avô. Eu nasci em São João del-Rei em 27 de dezembro de 1930. Minha vó viu um menino passando fome lá porque eles estavam tentando me alimentar com leite, me agarrou e me levou para fazenda do meu avô, que chamava: Fazendo do Angola. Eu tenho uma fazenda com esse nome aqui no Distrito Federal e nessa fazenda nós praticamos uma agricultura inicialmente muito primitiva. Na fazenda do meu avô, depois meu tio Antônio entrou lá, modernizou a agricultura e se transformou num dos maiores produtores de leite daquela região.

33 – Então, essa questão de tecnologia, inovação e vontade seria a sua mensagem para os jovens?

E.A: Não ter medo, enfrentar os desafios e não ter medo de nada. O futuro tem que ser enfrentado com coragem, com destreza e com toda a força que a mente humana permite.

34 – O senhor gostaria de fazer mais algum comentário final?

E.A: Eu quero fazer um pequeno comentário. A Embrapa está estabelecida, já produziu um resultado fantástico para a economia brasileira e nós temos que continuar com essa obra, fazendo com que a ciência seja a principal razão da modernização da agricultura brasileira, maior método de produtividade e da poupança de terra que vai ser tirada do desmatamento para a agricultura moderna. Eu espero que todos nós continuemos nessa luta pela agricultura do Brasil, que é quem está salvando a economia brasileira. A característica principal disso foi investir em ciência e, sobretudo, não ter medo, ter destreza e ser capaz de enfrentar o futuro.