Considerações sobre o planejamento das contratações públicas e os estudos técnicos preliminares à luz da IN 40/2020

 

Gabriela Lira Borges é Mestre em Governança e Planejamento Público pela UTFPR. Especialista em Direito Constitucional pela Unisul. Especialista em Direito Tributário pela Uniderp/Anhanguera. Procuradora do Estado do Acre de 2005 a 2012. Consultora Jurídica da Consultoria Zênite de 2012 a 2016. Analista de Licitações do SESC Paraná de 2016 a 2017. Atualmente, Assessora Jurídica do SENAR Paraná.

Autora de diversos artigos jurídicos, versando especialmente sobre licitações e contratos, regime de pessoal dos servidores públicos e Sistema S e consultora jurídica na área de licitações, contratos e regime jurídico de servidores públicos.

LinkedIn: Gabriela Borges

E-mail: [email protected]

Com grande satisfação, inicio hoje uma série de contribuições ao caríssimo site Ementário de Gestão Pública. Para este momento, opto por “começar pelo começo”, tecendo algumas considerações sobre o planejamento das contratações públicas, fase de imensa relevância para êxito da contratação, seja em termos econômicos, seja para os fins de atender efetivamente à necessidade Administração e, por conseguinte, do cidadão.

Dentro desse tema, destacarei alguns aspectos relativos aos estudos técnicos preliminares um dos elementos ou ferramenta do planejamento que, recentemente, veio a ser fortalecida pela edição da Instrução Normativa nº 40, de 22 de maio de 2020, que dispõe sobre a elaboração dos Estudos Técnicos Preliminares – ETP – no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional, e sobre o Sistema ETP digital.

As finalidades do planejamento são inúmeras entre as quais podem ser citadas o claro delineamento da necessidade da Administração, a identificação da solução mais adequada ao atendimento desta necessidade em termos qualitativos e quantitativos, a identificação dos custos e riscos da contratação além da prevenção a problemas no relacionamento contratual[1], de modo que não nos parece exagerado afirmar que de um bom planejamento dependerá o sucesso ou não da contratação[2].

Em termos normativos, verifica-se que não é recente a preocupação ou ao menos o reconhecimento da relevância do planejamento para a Administração Pública de um modo geral e no cenário das contratações públicas. Nesse sentido, registram-se as disposições contidas no art. 6º, inciso I do Decreto-Lei 200, de 1967, na Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), no art. 6º, inciso IX, art. 7º, § 9 da Lei nº 8.666/1993, no art. 3º da Lei nº 10.520/2002, art. 6º, inciso I do Decreto nº 10024/2019, entre outros.

Na mesma linha, observa-se que, de há muito, a etapa de planejamento tem sua importância reconhecida pelo Tribunal de Contas de União. Nesse sentido, é antiga a orientação de que as contratações públicas deverão ser precedidas de rigoroso planejamento. Como exemplo disso, pode ser citado o acórdão 1521/2003-Plenário que, relativamente à contratação de fornecimento de produtos e serviços de informática, averbou: “a licitação deve ser precedida de minucioso planejamento, realizado em harmonia com o planejamento estratégico da instituição (…)”[3].  

Da análise da jurisprudência, percebe-se que o foco do Tribunal sobre aspectos do planejamento das contratações se acentuou, como demonstra, por exemplo, o recentíssimo Acórdão nº 2240/2020-Plenário, divulgado no Boletim nº 239 deste Ementário, o qual indicou as seguintes impropriedades/falhas relativas aos estudos técnicos preliminares:  

1.7.1. dar ciência (…), com fundamento no art. 9º, inciso I, da Resolução – TCU 315/2020, sobre as seguintes impropriedades/falhas, (…), para que sejam adotadas medidas internas com vistas à prevenção de outras ocorrências semelhantes: (…)

1.7.1.2. ausência no estudo técnico preliminar, de levantamento das empresas/indústrias aptas a atender à demanda na forma solicitada nas exigências constantes (…) do termo de referência do certame; e

1.7.1.3. ausência, no estudo técnico preliminar, dos possíveis impactos da falta de exigência de apresentação de atestados de capacidade técnica, impedindo a comprovação da capacidade produtiva e logística das licitantes, relacionada às quantidades e aos prazos de fornecimento, em possível prejuízo ao disposto no artigo 3º, inciso I, da Lei 10.520/2002;Se em termos teóricos a necessidade de planejamento prévio à contratação está sedimentada, é fato que, na prática, esta etapa ainda não recebe a merecida atenção. As consequências disso vão desde frequentes republicações de editais, objetivando, por exemplo, retificar características de descritivo, chegando até a contratações de objetos evidentemente inadequados ao atendimento da necessidade ou contratações claramente antieconômicas.

As dificuldades para a consolidação de boas práticas de planejamento podem ter muitas origens, entre as quais, as mais citadas são a falta de estrutura dos órgãos, a insuficiência de pessoal, a falta de capacitação especifica dos gestores quanto ao tema, e, particularmente, penso que há até mesmo um fator cultural na medida em que, de certa forma, a sociedade na qual estamos inseridos valoriza a “habilidade” de agir por improviso.

Recentemente, o planejamento das contratações ganhou reforço pela edição da precitada Instrução Normativa nº 40, de 22 de maio de 2020, que disciplinou a elaboração dos Estudos Técnicos Preliminares – ETP, fixando-o como documento constitutivo da primeira etapa do planejamento, tanto para a aquisição de bens quanto para a contratação de serviços e obras, realizadas pela Administração pública federal direta, autárquica e fundacional.

Anteriormente, outras normas já se referiam aos estudos técnicos preliminares, a exemplo da Instrução Normativa 5, de 2017, que disciplina os procedimentos de contratação de serviços sob regime de execução indireta pela Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional, da Instrução Normativa 1, de 2019 sobre contratações de soluções de TIC pelos órgãos do Sisp, do novo Decreto do pregão – Decreto 10.024/2019 além da própria Lei 8.666/93, em seu Art. 6º, IX.

Assim, a norma não é inovadora quanto ao cabimento dos estudos preliminares na fase de planejamento da contratação, mas assim pode ser considerada quando prevê de forma expressa a adoção do procedimento para a aquisição de bens de um modo geral. Inova também ao criar o Sistema ETP digital, ferramenta informatizada disponibilizada no Portal de Compras do Governo Federal, para elaboração dos ETP (art. 2º da IN).

De acordo com art. 1º, § 1º bem como do art. 5º da IN 40, os ETP destinam-se a permitir a avaliação da viabilidade técnica, socioeconômica e ambiental da contratação. Seu objetivo então é subsidiar a decisão do gestor de dar ou não andamento ao processo de contratação. Caso opte por contratar, os estudos técnicos preliminares fundamentarão o termo de referência ou ao projeto básico.

No momento dos estudos preliminares, caberá ao gestor identificar de forma clara a necessidade da Administração, descrever as análises realizadas em termos de requisitos, alternativas, escolhas, resultados pretendidos e demais características, ações que são muitas vezes realizadas de forma intuitiva pelos gestores na fase de planejamento, mas que até então poderiam ter seu acesso restrito a quem as realiza.

Assim, uma das vantagens da elaboração dos ETP é conferir formalidade e transparência a informações que até então poderiam permanecer restritas aos gestores envolvidos, de modo a que estas possam ser validamente utilizadas nas etapas subsequentes do processo de contratação.

Quanto à competência para elaboração, o art. 6º estabelece que os ETP serão elaborados conjuntamente por servidores da área técnica e requisitante ou, quando houver, pela equipe de planejamento da contratação. Ao assim prever, a norma reconhece o fato de que muitos órgãos ainda não contam com equipes específicas incumbidas da atividade de planejamento, situação que reforça o que acima foi dito no sentido de que, na prática, o planejamento ainda não atingiu o nível de relevância de que é merecedor.

Aspecto que talvez possa suscitar controvérsias diz respeito ao nível de detalhamento do conteúdo dos estudos técnicos preliminares. Sobre este aspecto, o art. 7º da IN 40 elenca, em treze incisos, informações que deverão ser produzidas e registradas no Sistema ETP digital, sendo que destes treze incisos oito são obrigatórios, quais sejam:

  1. descrição da necessidade da contratação, considerado o problema a ser resolvido sob a perspectiva do interesse público (inc. I);
  2. descrição da solução como um todo, inclusive das exigências relacionadas à manutenção e à assistência técnica, quando for o caso, acompanhada das justificativas técnica e econômica da escolha do tipo de solução (inc. IV);
  3. estimativa das quantidades a serem contratadas, acompanhada das memórias de cálculo e dos documentos que lhe dão suporte, considerando a interdependência com outras contratações, de modo a possibilitar economia de escala (inc. V);
  4. estimativa do valor da contratação, acompanhada dos preços unitários referenciais, das memórias de cálculo e dos documentos que lhe dão suporte, que poderão constar de anexo classificado, se a administração optar por preservar o seu sigilo até a conclusão da licitação (inc.VI);
  5. justificativas para o parcelamento ou não da solução, se aplicável (inc. VII);
  6. demonstração do alinhamento entre a contratação e o planejamento do órgão ou entidade, identificando a previsão no Plano Anual de Contratações ou, se for o caso, justificando a ausência de previsão (inc. IX);
  7. posicionamento conclusivo sobre a viabilidade e razoabilidade da contratação. inc. XIII).

Ainda, ao fixar o conteúdo obrigatório dos estudos preliminares, a IN exige que a não inclusão dos elementos facultativos (não obrigatórios) deverá também ser justificada.  

A crítica que pode ser feita ao dispositivo refere-se à sua aplicação nos casos de contratações de objetos singelos, de baixa complexidade, situação em que tal detalhamento poderia representar, segundo uma determinada ótica, uma burocratização desnecessária do procedimento, com desperdício de tempo em prejuízo da eficiência da contratação. Contudo, há que se ponderar que, no caso de objetos singelos, as exigências referidas pelo art. 7º serão consequentemente mais singelas e de mais simples execução.

Superado o tratamento quanto ao conteúdo dos ETP, menciona-se que o art. 8º da norma excepcionou algumas situações de sua obrigatoriedade. Assim, a elaboração dos ETP restou facultada para contratações com dispensa de licitação em razão do valor, casos de guerra ou grave perturbação da ordem, emergência ou de calamidade pública e na contratação do remanescente (incisos I, II, III, IV e XI do art. 24 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993) e dispensada nos casos de prorrogações contratuais relativas a objetos de prestação de natureza continuada.

Em linha de conclusão, pode-se afirmar que o detalhamento trazido pela IN 40, especialmente no que toca ao conteúdo dos estudos técnicos preliminares, por vezes pode ser confundido, ou recebido por alguns, como burocratização. Porém, considerando o movimento de fortalecimento da governança pública que tem se observado em tempos mais recentes, pode-se chegar à conclusão diversa, no sentido de que o grau de detalhamento tem objetivo pedagógico.

Há que se considerar que a norma se insere em um cenário em que o planejar, por mais festejado que seja em termos teóricos, é ainda incipiente na prática. Assim, uma normatização mais minudente, por assim dizer, é uma forma válida e enérgica de romper com paradigmas estabelecidos nas contratações públicas que por vezes não reconhecem a essencialidade da atividade de planejamento para o êxito da contratação.

Assim, para os agentes que já exercem a atividade de planejamento de maneira mais estruturada, a maior repercussão da norma será a de impor a formalização de ações que já são usualmente realizadas. Para os que ainda não realizavam o planejamento no nível exigido por ela, trata-se de oportunidade para avançar neste aspecto, com a segurança de agir amparado por um ato que não apenas normatiza, mas também orienta.  

[1] Neste sentido, Marçal Justen Filho afirma que “a ausência de planejamento adequado é a principal causa de problemas no relacionamento contratual”. In Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos – Lei 8.666/93. 17ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 220.

[2] Neste sentido, Renato Geraldo Mendes, em seu Processo de Contratação – Fases, Etapas e Atos. Curitiba: Editora Zênite, 2012.  

[3] Outros exemplos são: os acórdãos 265/2010-Plenário, 428//2010-Segunda Câmara, 367/2010-Segunda Câmara (Relação), 1182/2004-Plenário, 247/2009-Plenário, entre muitos outros.