EGP Entrevista: Governança das Aquisições Públicas, com Jose Amauri Costa Fernandes

Caríssimos leitores!

Unir pesquisadores e servidores públicos tem sido uma das missões do nosso EGP Entrevista, sob o comando do zeloso amigo Eduardo Paracêncio.  Pensando nisso, o professor e atual Gerente de Licitações da Valec, Vinícius de Lima e Silva Martins, convidou o Jose Amauri Costa Fernandes, autor de um robusto estudo sobre governança e gestão das aquisições públicas, para uma conversa. Confiram!

Vinícius de Lima e Silva Martins – Quais os problemas observados e motivações mais relevantes que serviram como inspiração para a sua pesquisa?

Jose Amauri Costa Fernandes – Olá! Primeiro gostaria de agradecer a oportunidade de poder conceder esta entrevista, com base no estudo que fiz para o meu mestrado em gestão pública da UFRN. É uma honra para mim poder comentar sobre a temática da governança das aquisições públicas.

Os problemas que eu observei vieram da instituição onde trabalho – o Instituto, Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), junto com os resultados de algumas auditoria sobre a governança e a gestão das contratações/aquisições realizadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), em que o IFRN esteve no rol das entidades auditadas. Entre os principais problemas apontados pelos Acórdãos do TCU – fruto das auditorias – estão, por exemplo: infração ao princípio da segregação de funções; não definição de objetivos e metas para as aquisições; ausência de corpo colegiado para tomar decisões acerca das aquisições; não monitoramento do desempenho das aquisições; não Identificação das competências e suas lacunas em aquisições; e não realização do monitoramento do desempenho dos contratos.

De sorte, quando estava desenvolvido o meu estudo, o IFRN montou um grupo de trabalho para diagnosticar problemas e desenvolver algumas melhorias em suas aquisições. Isso se deu devido a obrigatoriedade do órgão em ter de centralizar as suas aquisições, conforme exigido pela Portaria nº 13.623/2019 do Ministério da Economia (ME). No diagnóstico do IFRN, entre outros problemas que foram levantados, estavam: poucas licitações realizadas; Infração ao princípio da segregação de funções; demora na realização de licitações de serviços; e ausência de um suporte sistêmico em aquisições. Com base nisso, o órgão montou o seu plano de centralização das compras e enviou ao ME, sendo posteriormente aprovado. Para pôr em prática esse plano e resolver os problemas identificados, o grupo de trabalho criado propôs, entre outras coisas:  elaborar um manual para as aquisições; criar uma assessoria de compras, para avaliar e compilar as necessidades, bem como, coordenar o planejamento e a execução do Plano Anual de Contratações (PAC); e elaborar do fluxograma dos processos de aquisição.

Diante desse cenário que foi se construindo concomitante a realização do meu estudo, despertou-me a motivado para contribui com o IFRN e, indiretamente, com outros órgãos semelhantes a ele, a partir do desenvolvimento de um framework que reunisse algumas das principais orientações dos órgãos de controle e da literatura especializada sobre a governança e gestão das aquisições públicas, a fim de que servisse como um norte ao órgão na reorganização das suas estruturas de compras.

VM – Quais os principais desafios à implantação no órgão estudado, do Plano de Centralização preconizado pela Portaria nº 13.623/2019 do Ministério da Economia?

JF – Acredito que o principal desafio foi definir as Unidades de Administração de Serviços Gerais (UASG’s) que continuariam a realizar as compras, reorganizando em torno delas aquelas que não poderia mais fazer as suas aquisições independentemente. De acordo com a Portaria nº 13.623/2019, os órgãos só poderão ter 32% da sua quantidade de UASG’s até 31 de março de 2022 (vale lembrar que a desativação das UASG’s, prevista nessa portaria, só envolve a questão das compras, não interferindo na autonomia do órgão quanto as demais funções, como administrativa, financeiro e patrimonial).

Desse modo, o IFRN decidiu reduzir de 19 para 7 UASG’s que continuariam a atuar na realização das aquisições, incorporando-se a essas as demais que foram desativadas. Assim, foram criados 7 núcleos de compras, os quais foram definidos predominantemente pela distância geográfica entre os campi e a observação dos arranjos produtivos, sociais e culturais locais semelhantes. Além dessa reorganização das UASG’s, o IFRN construiu uma proposta de restruturação da Pró-reitoria de Administração (PROAD), a fim de criar setores sistêmicos de suporte às aquisições e a gestão dos contratos, entre outras funções.

No entanto, apesar do esforço empreendido na definição dos núcleos de compra e na restruturação da PROAD, o que tenho percebido é que o maior desafio estar por vir, que é pôr em prática esse novo modelo de aquisições definido pelo órgão. A título de exemplo, em alguns núcleos existem problemas de ordem prática que têm dificultado a sua implementação, como por exemplo, a definição de uma sala para o seu funcionamento. Outro problema é que a reestruturação da PROAD ainda não foi efetivamente posta em prática, não havendo o funcionamento dos setores sistêmicos como estava previsto. Assim, há muito que avançar em questões práticas para que o IFRN possa desenvolver a sua governança em aquisições, além do que já foi criado.

VM – Na sua opinião, quais as principais vantagens e desvantagens do processo de centralização de contratações públicas no âmbito dos órgãos da educação pública?  E as pequenas empresas, seriam prejudicadas nessa centralização?

JF – Na minha opinião, para os órgãos de educação pública há uma série de vantagens com a centralização das aquisições, desde que esse processo seja construído sobre o plano de fundo da governança. Entre as várias vantagens apontadas pela literatura, pode-se citar: maior controle sobre os processos; centralização das informações sobre as aquisições em um único local, favorecendo a transparência; padronização de rotinas; racionalização dos processos; possibilidade de construir um catálogo de itens do órgão; estímulo à prestação de contas; formação de uma equipe com know-how específico sobre as aquisições públicos (e considero esse como um dos principais ganhos); melhoria contínua na realização de processos; possiblidade dos campi focarem na suas atividades operacionais, entre outras.

No entanto, considero que a centralização deve ser adotada com ressalvas, para que ela não se torne um modelo insulado, longe da realidade das unidades requisitantes e dos objetivos do órgão. Caos o modelo centralizado não seja bem executado poderá incorrer em problemas como: falta de transparência dos processos; dificuldade para a participação das micro e pequenas empresas, localizadas na cidade do campus ou em suas imediações; demora na execução processual, dado o aumento no volume dos processos; prejuízo à execução das atividades dos campi causado pela demora na realização das licitações, entre outros que possam ocorrer.

Assim, o modelo de aquisição centralizado tem as suas benesses, porém, não é por si completo, ele deve funcionar observando as necessidades do requisitante, as mudanças do mercado e dos licitantes, as políticas públicas criadas nessa área e os objetivos pretendidos com as aquisições.

No caso das micro e pequenas empresas, há legislação que resguarda a sua participação nos processos licitatórios (Lei Complementar nº. 147/2014). E é nesse ponto onde deve recair um análise do gestor de compras, a fim de que a licitação possa cumprir com a sua missão social. Sabe-se que as licitações movimentam um volume muito grande de recursos no mercado e que ela é promotora de políticas públicas. Por isso é que, dada as devidas justificativas plausíveis, os órgãos devem adotar licitações que se encaixem com o perfil das micro e pequenas empresas, especialmente no caso de elas terem um histórico de participação em certames da entidade antes da centralização das compras.

Em resumo, acredito que a centralização das aquisições deve ser adotada para favorecer o controle e a melhorias dos processos de compra dos órgãos de ensino público. No entanto, isso deve ser feito em conjunto com outros elementos provenientes da governança, a fim de que a entidade atinja aos seus objetivos e sua função social, não sendo geradora de problemas públicos, mas sim promotoras de políticas para o bem-estar da sociedade.

VM – A pesquisa apresenta como uma proposta de solução prática, a instituição de um Conselho de Aquisições. Sobre esse interessante tema, relate a sua importância e possíveis dificuldades na aplicabilidade dos órgãos da administração pública?

JF – Dentro da definição de Governança Pública, prevista no documento “Referencial básico de governança organizacional para organizações públicas e outros entes jurisdicionados ao TCU” do Tribunal de Contas da União, há os mecanismos da liderança, estratégia e controle. O Conselho de Aquisições faz parte do mecanismo da liderança, e foi prevista no relatório do Acórdão nº 588/2018-TCU (fruto de uma das auditorias sobre compras) e é endossada por alguns autores da literatura especializada.

Em resumo, o Conselho de Aquisições serve para impulsionar a governanças das aquisições, devendo ser formado por atores diversificados, no intuito de construir diretrizes, políticas e métodos de processos de compras. Ou seja, ele se configura como a autoridade deliberativa das questões estratégias sobre as aquisições, atuando no suporte aos setores dos níveis intermediário e operacional. Serve também para suprir a alta administração de informações sobre os trabalhos e resultados obtidos em todas as fases do processos de compra pública (planejamento, licitação e gestão de contratos), além de atender à prestação de contas junto à sociedade, através dos relatórios que ela deve gerar.

O IFRN, por meio do diagnóstico que fez, percebeu a necessidade de criar setores sistêmicos na PROAD, para dar o suporte aos campi no direcionamento das compras, especialmente devido a restruturação organizacional a partir da definição dos núcleos de compra. No entanto, a criação de um conselho de aquisições, para responder por questões estratégicas, não foi previsto pelo órgão.

Acredito que as principais dificuldades em implantar um Conselho de Aquisições estão em questões relativas ao mecanismo da liderança, no que tange ao seu desempenho a fim de promover as mudanças organizacionais necessárias junto aos colegiados consultivos e deliberativos do órgão. Também é essencial dar voz aos setores subordinados, escutando-os para se construir uma proposta de conselho que seja de anuência da maioria. No mais, todas as vantagens pretendidas com a criação do conselho e o seus documentos acessórios devem estar formalizados para que aos colegiados consultivos e deliberativos detenham as informações necessárias para decidir pela sua criação.

VM – Um aspecto interessante abordado na sua pesquisa foi a Gestão por Competências, com a proposta de desenvolvimento da Trilha de Aprendizagem, inclusive aderente às premissas da nova Lei de Licitações e Contratos. Na sua percepção, quais seriam os principais desafios e oportunidades aos gestores, agentes públicos e de contratações, no cumprimento de uma prática de capacitação continuada na Administração Pública?

JF – Acredito que são vários desafios e serem vencidos nessa área. Um deles é o de alocar as pessoas certas nos lugares em que elas deveriam estar, ou seja, considerar as experiências passadas do servidor para a sua colocação em uma determinada função. Isso propicia a alocação de servidores pelo mérito, e não por questões políticas, por exemplo. Outro desafio estar em identificar as necessidades de desenvolvimento mais preponderantes presente na maior parte daqueles que trabalham com aquisições, a fim de promover capacitações padronizadas para toda a equipe. Mas também é essencial que sejam preenchidas as lacunas de competências individuais de cada servidor. Definir uma trilha de aprendizagem facilita a construção do capital social, identificando lacunas e oportunidades de capacitação adequados para os servidores da área de compras.

Assim, as oportunidades podem ser muitas, porém, eu destaco a importância do papel que a Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) vem desempenhando, no oferecimento de diversos cursos de forma gratuita para os servidores dos órgãos públicos. Capacitações que antes custavam um dispêndio considerável para os órgãos, agora, podem ser realizadas de forma gratuita remotamente, economizando com diárias, passagens, deslocamento e com a própria inscrição do curso. Isso oferece uma vantagem enorme, ao ter uma instituição que oferte capacitações de forma pública, que antes era apenas ofertado pelo mercado privado. No entanto, não se pode negligenciar a importância dos encontros presenciais para a troca de experiências e, principalmente, o fortalecimento dos laços entre os membros das equipes de compras. Assim, é importante também haver eventos internos para discutir os aprendizados.

Enfim, o importante é ter uma equipe de aquisições coesa, que seja reconhecida por seu líder, a fim de ele saber quais são as suas lacunas e as necessidades de competência para melhorar o desempenho das suas atribuições.

VM – Ainda sobre a Gestão por Competências, considerando os riscos de responsabilizações da atividade relacionada às contratações públicas, na sua opinião, como o gestor conseguiria atrair e/ou motivar os servidores a atuarem nesta área?

JF – Acredito que em qualquer atividade de um órgão público há riscos, sejam eles grandes ou pequenos. Acredito também que os riscos aumentar à medida que o trabalho passa a ter uma maior representatividade na instituição, aliado a um certo grau de inovação. Assim, quero dizer que correr riscos é natural! Caso um servidor não queira correr qualquer tipo de risco, provavelmente, ele desempenhará atividades robóticas, porém, mesmo assim, estará sujeito a riscos do tipo: quebra do equipamento, por exemplo.

Quando o servidor sabe fazer, ou tem o conhecimento adequado para encontrar os melhores caminhos para realizar uma determinada atividade, justificando formal e adequadamente as suas escolhas, o trabalho torna-se mais fluido e leve. A legislação diz estritamente aquilo que deve ser feito, cabe ao servidor, no caso concreto, tomar as decisões que melhor revertam em benefícios ao serviço público e a sociedade, devendo sopesar entre o custo e o benefício na hora de decidir.

Assim, para que toda essa narrativa teórica faça sentido na prática, o gestor/líder deve discutir os riscos com os seus subordinados, fazendo a devida Gestão de Ricos das aquisições públicas, a fim de tratá-los para que não ocorram, ou caso ocorram, que tenham um plano de contingência já estabelecido. A gestão de riscos serve justamente para identificar aquelas situações em que possa prejudicar os objetivos pretendidos com a contratação, envolvendo desde o planejamento, passando pela licitação e chegando na gestão do contrato. Assim, fazer a gestão de riscos é compartilhar responsabilidade, tanto na identificação dos riscos, junto aos setores requisitantes e demais atores, quanto no seu tratamento, no momento das prorrogações contratuais, por exemplo. Assim, identificando e tratando os riscos, as chances de erros e responsabilizações se torna menor.

Porém, isso advém de um espírito de equipe, em que as dúvidas e incertezas sejam sanadas, as experiências passadas compartilhadas e o trabalho passe a ser melhor executado. Desse modo, acredito que a capacitação e o comprometimento de toda a equipe de aquisições fazem a diferença na motivação dos servidores que trabalham nessa área, servindo para atrair outros que tenham interesse em atuar nela.

VM– Considerando o enorme abismo de governança e infraestrutura dos órgãos da Administração Pública, principalmente quando comparamos, geralmente, o ente federal e os entes municipais, comente os principais desafios de observarmos as boas práticas de governança de contratações aplicadas nos órgãos municipais?

JF – A meu ver, o tema da governança está ganhando notoriedade na área pública somente nos últimos anos. E na área de aquisições não é diferente. Assim, saber executar as práticas que traduzem a governança no dia a dia é o grande desafio para os órgãos públicos. Em nível federal, algumas legislações têm impelido aos órgãos a desempenharem novos métodos de trabalho para se adequar a governança. No entanto, muitas dessas leis não são compulsórias aos municípios, ou há o estabelecimento de um prazo para o seu cumprimento, o que pode retardar o desenvolvimento da governança em aquisições nos entes municipais. Ao mesmo tempo, deve ser levado em consideração o nível de maturidade em governança existente na gestão das cidades brasileiras para que não obrigarem a desenvolver algo que realmente não tenham capacidade de fazer.

Assim, acredito que a realidade da maioria dos municípios brasileiros ainda é um pouco complexa para se exigir estruturas e processos complexos de governança. No entanto, um bom início para a implantação da governança em nível local pode começar pela observação aos princípios da governança pública, gerando-se um esforço para que as gestões municipais incorporem em suas atividades aspectos como: capacidade de resposta à sociedade; prestação de contas; integridade; confiabilidade; e transparência. Outros princípios podem ser encontrados no Decreto nº 9.203/2017, no Referencial Básico de Governança Organizacional do TCU e na Nova Lei de Licitações nº 14.133/2021.

Para que isso ocorra, deve-se investir em capacitação junto aos servidores que atuam nos setores de aquisições, para que se revestam da cultura da governança e comecem a mudar as suas práticas. A alta gestão do município (prefeito, vice e grupo de secretários) também deve participar desse processo, patrocinando as mudanças necessárias.  

Jose Amauri Costa Fernandes – Mestre em Gestão Pública pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); graduado em Administração de Empresas pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA); e especialista em Gestão Pública pela Universidade Anhanguera (UNIDERP). Atuo como Administrador do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN) – Campus Apodi, trabalhando no auxílio a gestão dos contratos administrativos e na desenvolvimento e revisão do Plano de Logística Sustentável (PLS) do Campus Apodi. Os meus interesses de estudo, pesquisa e desenvolvimento profissional estão voltados para as áreas da gestão pública, aquisições públicas, eficiência administrativa, gestão de contratos administrativos e políticas públicas.

Vinícius de Lima e Silva Martins – Doutorando em Engenharia de Produção e Sistemas no CEFET/RJ, Mestre em Gestão e Estratégia e Graduado em Administração pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ); MBA em Pregão Eletrônico e em Formação de Gestores de Contratos. Gerente de Licitações da Valec Engenharia, Construções e Ferrovias S.A, Servidor Federal do Ministério da Saúde, atuou como Subsecretário de Compras e Suprimentos, como Subsecretário da Secretaria Municipal de Saúde e como Subsecretário de Auditoria Interna da Prefeitura Municipal de São Gonçalo/RJ. Também exerceu as funções de Coordenador de Administração e Chefe de Compras do Hospital Federal do Andaraí; Chefe da Divisão de Licitações do Departamento de Gestão Hospitalar, Presidente de Comissão de Licitação e Pregoeiro do Hospital Federal da Lagoa. Atua como Professor de MBA e Cursos de Extensão em Licitações e Contratos, com ênfase em Pregão Eletrônico e na Formação de Pregoeiros, agentes da área de Suprimentos, Gestores e Fiscais de Contratos.