EGP Entrevista: Rafael Gerard Demuelenaere

Caríssimos leitores!

A edição da nossa entrevista de hoje trata das contratações públicas de uma das principais estruturas da Administração Pública Federal, diante das dimensões de nosso Brasil e da necessidade de meios para integração das regiões do país. Reforçando a assertiva de que políticas públicas de boa qualidade dependem de compras públicas bem estruturadas, o professor e atual Diretor de Administração e Finanças da Valec, nosso prezado amigo Márcio Lima Medeiros, convidou o professor e atual Coordenador-Geral de Cadastro e Licitações do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes, Rafael Gerard de Almeida Demuelenaere, para uma conversa. Confiram!

Márcio Medeiros – A nova lei de licitações traz algumas mudanças conceituais sobre obras e serviços de engenharia e suas modalidades licitatórias. Quais são os impactos para o DNIT e qual modalidade deverá ser aplicada predominantemente?

Rafael Demuelenaere–  É inegável que um dos grandes méritos da nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) foi ter aproveitado as experiências das legislações anteriores, sendo fácil perceber no texto atual particularidades da própria Lei Geral de Contratações (Lei nº 8.666/1993), bem como da Lei do RDC (Lei nº 12.462/2011), da Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016) e do último Decreto do Pregão (Decreto nº 10.024/2019).

Em relação ao DNIT, que já vem utilizando o pregão para contratação de serviços comuns de engenharia, até antes do Decreto nº 10.024/2019, e sendo ainda o órgão da Administração Pública que mais utilizou o RDC nas suas contratações, os impactos proporcionados pela Nova Lei não são tão grandes se compararmos com outros órgãos que estão fazendo a transição direta da Lei nº 8.666/1993 para a Lei nº 14.133/2021.

Considerando que os objetos mais contratados pelo DNIT são serviços e obras de engenharia, certo está que as modalidades predominantes na nova lei serão o Pregão e a Concorrência, que nesta nova lei tem o mesmo rito com diferenças apenas nos prazos e nos modos de disputa. As outras modalidades, como por exemplo o diálogo competitivo, acredito que sejam usadas de maneira mais tímida em função das suas características inerentes.

MM – A nova lei de licitações incorpora em definitivo o regime de contratação integrada, dispensando a existência do projeto prévio. Ou seja, a licitação pode ser feita antes que um projeto esteja finalizado. Como você avalia essa possibilidade e seus benefícios?

RD – A contratação integrada é um dos regimes de execução previstos na nova lei e definida como sendo usada para “contratação de obras e serviços de engenharia em que o contratado é responsável por elaborar e desenvolver os projetos básico e executivo, executar obras e serviços de engenharia, fornecer bens ou prestar serviços especiais e realizar montagem, teste, pré-operação e as demais operações necessárias e suficientes para a entrega final do objeto”.

A grande diferença para a utilização da contratação integrada, já prevista na Lei do RDC, é que era necessário enquadrar o objeto em uma das seguintes situações para sua aplicação:

(…)
Art. 9º Nas licitações de obras e serviços de engenharia, no âmbito do RDC, poderá ser utilizada a contratação integrada, desde que técnica e economicamente justificada e cujo objeto envolva, pelo menos, uma das seguintes condições: 
I – inovação tecnológica ou técnica; (Incluído pela Lei nº 12.980, de 2014)
II – possibilidade de execução com diferentes metodologias; ou (Incluído pela Lei nº 12.980, de 2014)
III – possibilidade de execução com tecnologias de domínio restrito no mercado. (Incluído pela Lei nº 12.980, de 2014)
(…)

Já na Nova Lei fica a critério do gestor a sua utilização, não sendo necessário à sua justificativa ou enquadramento em determinados objetos, ou seja, a decisão é do gestor se vai utilizar a contratação integrada ou outro regime de execução em qualquer objeto, levando em conta apenas o nível de detalhamento em que se encontra seu estudo/ projeto.

Sabe-se que a possibilidade de deixar o contratado elaborar o projeto e executar a obra proporciona muitas vantagens a Administração; a primeira, e mais óbvia, é a realização de apenas um procedimento licitatório ao invés de dois, o que agiliza sobremaneira o atingimento do objetivo que é proporcionar a infraestrutura para o cidadão.

Outro ponto importante, é proporcionar ao privado uma maior liberdade quando da realização dos projetos, oferecendo a ele poder de inovar e buscar soluções mais modernas para as obras públicas.

Da mesma forma, um mecanismo muito importante, e que agora está como obrigatório na nova lei de licitações, é a exigência de matriz de risco quando a escolha do regime for contratações integradas e/ou semi-integradas. Tal matriz é conceituada pela Nova Lei como sendo uma “cláusula contratual definidora de riscos e de responsabilidades entre as partes e caracterizadora do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, em termos de ônus financeiro decorrente de eventos supervenientes à contratação”.

Portanto, percebe-se que este é um instrumento de governança importante para alocação de riscos e uma tentativa de prever problemas futuros durante a execução contratual, o que proporciona maior transparência para os licitantes quanto a eventuais riscos que a contratação está sujeita, e como tal, cada vez mais será utilizado nas contratações de obras e serviços de engenharia por ocasião da nova lei de licitações.

MM – Nos últimos anos os resultados das licitações de obras e serviços de engenharia resultam em descontos superiores a 40%. O maior desafio dessas licitações é melhor equacionar essa precificação, aprimoramento dos critérios e condições editalícias ou da gestão/fiscalização contratual?

RD – Em meados de 2015, o DNIT passou a realizar todos os seus procedimentos licitatórios da forma eletrônica, ficando perceptível uma maior participação de licitantes e, consequentemente, maior disputa na fase de lances o que gerou descontos superiores aos procedimentos presenciais em objetos similares que eram feitos no passado.
Importante esclarecer que descontos altos muitas vezes não significam sucesso. Infelizmente, temos algumas situações de obras inacabadas ou serviços paralisados em função destes descontos. Entretanto, é papel da Administração Pública combater os excessos.

Conforme colocado na pergunta os fatores como precificação, critérios de habilitação e gestão/fiscalização contratual podem sim, todos eles, contribuir para diminuir ou aumentar o desconto final de uma contratação dependendo de como são realizados, cobrados e executados. O que devemos pensar é que se as premissas colocadas nos Termos de Referência e/ou Projetos Básicos forem atendidas, é dever da Administração contratar o valor mais vantajoso.

E em relação a isso, o critério de análise de preço manifestamente inexequível, existente na lei nº 8.666/1993 é melhor que o da lei nº 14.133/2021 e explico o porquê:

Enquanto na lei nº 8.666/1993 leva em consideração o universo de propostas na sua análise de inexequibilidade, a lei nº 14.133/2021 considera apenas como verdade absoluta o valor de referência da Administração como parâmetro: “No caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração”.

Desta forma, parâmetros ou vantagens que determinadas empresas privadas podem ter para conseguir elevar seus descontos, que não são considerados nas tabelas referenciais, como por exemplo, expertise do contratado, experiência em determinado serviço, situação de mercado e estratégia na contratação ou algum contrato preexistente, podem, neste novo critério da Nova Lei, levar a termos cada vez mais diligências e consultas durante o processo licitatório, o que inevitavelmente, prolongará sua realização e que não resultará em vantagens significativas para a contratação.

De qualquer forma, a atuação da Administração, em relação a descontos altos, deve ser: SEMPRE ALERTA! Ou seja, devemos agir em todas as etapas do processo começando com uma boa precificação, com critérios de habilitação compatíveis com o objeto a ser contratado e com uma gestão/fiscalização atuante que exija o cumprimento fiel dos parâmetros delimitados no edital, tanto em quantidade quanto em qualidade.

MM – O DNIT é uma referência em licitações de obras e serviços de engenharia. Comente sobre qual aspecto da maturidade do processo tem oportunidade de melhoria?

RD – Atualmente, no DNIT, os serviços técnicos especializados tais como os estudos técnicos, projetos básicos e projetos executivos, fiscalização, supervisão e gerenciamento de obras, têm sido constantemente contratados por menor preço (tanto no RDC quanto no Pregão). Tal fato ocorre, dentre outros motivos, pelo fato do rito processual ser mais célere nestas legislações e também pela dificuldade que se têm de elaborar uma proposta técnica que consiga realmente valorar metodologias diferenciadas de execução destes objetos e não apenas avaliar a experiência do contratado.

Neste ponto, vislumbramos uma oportunidade de melhoria nos processos de contratação, já que o critério de julgamento por técnica e preço, nos objetos citados no parágrafo anterior, nos contratos acima R$ 300.000,00 (trezentos mil reais), será obrigatório.

Conforme o artigo 36 da nova Lei, o critério de julgamento por técnica e preço será escolhido “quando estudo técnico preliminar demonstrar que a avaliação e a ponderação da qualidade técnica das propostas que superarem os requisitos mínimos estabelecidos no edital forem relevantes aos fins pretendidos pela Administração nas licitações para contratação de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual”.

Desta forma, ao se conseguir criar critérios técnicos e objetivos para estes tipos de serviços acredita-se que a Administração conseguirá melhor qualidade nestes produtos, não levando em consideração apenas o menor preço.

MM – Várias unidades regionais do DNIT realizam licitações. Qual o trabalho é realizado para garantir um padrão de qualidade mínimo e que garanta o cumprimento das exigências legais e adoção de boas práticas?

RD – A sede do DNIT está localizada em Brasília, no Distrito Federal e a autarquia possui ainda 26 unidades administrativas – as Superintendências Regionais, que realizam por meio de delegação os seus procedimentos licitatórios.

Desde o 2017, o DNIT iniciou política de desconcentração de contratações realizadas pelo órgão, ou seja, as Superintendências Regionais passaram a realizar mais licitações de obras e serviços de engenharia. Com essa descentralização, verificou-se a necessidade de acompanhamento das contratações, de forma a monitorar e garantir a aderência dos procedimentos realizados nas Superintendências com as atividades executadas na Sede.

Desta forma, desde o primeiro semestre de 2019 foi criado o Relatório de Desempenho das Superintendências Regionais, onde semestralmente a Coordenação Geral de Cadastro e Licitação – CGCL/DAF analisa todas as licitações homologadas nas Superintendências Regionais, a partir de requisitos objetivos. Assim, forma-se uma nota final que pode variar e 1 a 5, conforme os seguintes índices:

• 1 -0% a 30% – Indefinido/Imprevisível/Informal (Conceito de processo ausente);
• 2 -31% a 59%- Disciplinado/Organizado (Processos principais definidos);
• 3 -60% a 74%- Padronizado/Consistente/Bem estruturado (Procedimentos padronizados, algum grau de controle);
• 4 -75% a 85% – Previsível/Controlado/Gerenciado (Indicadores consistentes e bons);
• 5 -86% a 100% – Continuamente melhorado/Otimizando (Todos engajados na melhoria contínua).

Pelos índices acima, percebe-se que aquelas Superintendências que alcançaram o nível 4 ou 5 de maturidade estão aderentes aos procedimentos realizados pela Sede.

Neste primeiro semestre de 2021, e pela primeira vez, atingimos a marca de 4 ou 5 para todas Unidades Descentralizadas, ou seja, 100% das Superintendências Regionais estão aderentes aos procedimentos realizados na Sede, conforme mostrado na figura abaixo:

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Rafael Gerard de Almeida Demuelenaere possui graduação em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2002), mestrado em Engenharia Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2004), doutorado em Geociências pela Universidade Federal Fluminense (2010) e MBA Executivo em Gestão Pública na Fundação Getúlio Vargas (2012). É Analista em Infraestrutura de Transportes no DNIT desde 2009. Lecionou na UDF- Brasília (curso de graduação em engenharia civil) de 2015 a 2020. Atualmente é Coordenador Geral de Cadastro e Licitações do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes. Trabalhou de 2017 até 2019 na Coordenação de Projetos na Secretaria do Programa de Parcerias de Investimento – PPI da Presidência da República (PR) e leciona nos seguintes institutos de pós-graduação: IQUALI (MBA em Rodovias), IPOG (MBA em Ferrovias, MBA em Portos e MBA de Licitações & Contratos), Instituto Navigare (MBA em Licitação e Gestão de Contratos Administrativos), RTG (Especialização em Concessões Rodoviárias) e Universidade de Vassouras (MBA de Engenharia Ferroviária).

Márcio Lima Medeiros ocupa atualmente o cargo de Diretor de Administração e Finanças da Valec. Graduado em Física pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em Economia do Setor Público pela Universidade de Brasília (UnB) e Master en Direccion y Gestion de Planes y Fondos de Pensiones pela Universidade de Alcalá e Organización Iberoamaericana de Seguridad Social. Foi Diretor de Administração e Finanças do DNIT de janeiro de 2019 a abril deste ano. Lá, promoveu a redução de R$ 121 milhões de gastos nos primeiros 100 dias de gestão com foco na melhoria dos processos de aquisições da autarquia, levando o DNIT a se colocar em um patamar de referência nacional. Foi também Diretor de Administração e Finanças da Funpresp-Jud 2014-2018 (fundo de pensão dos servidores do judiciário da União), Assessor-Chefe da assessoria de Modernização e Gestão Estratégia do MPF – 2010-2014 e Diretor Executivo do Plano de Saúde Plan-Assiste de 2006 a 2011.