EGP Entrevista: O futuro da gestão de pessoas no setor público brasileiro com Antonio Isidro

Caríssimos leitores!

O futuro da gestão de pessoas no setor público brasileiro é desafiador. Para falar sobre contratações de servidores, avaliação de desempenho, teletrabalho, inovação, transformação digital e gestão por competências aplicados à administração pública, o nosso dileto entrevistador Eduardo Paracêncio convidou o doutor pela UnB, autor de livros e professor Antonio Isidro. Confiram!

Eduardo Paracêncio – Nos próximos anos, a tendência no setor público brasileiro envolve a realização de poucos concursos, a aposentadoria de muitos servidores e o avanço de tecnologias e da transformação digital. Como você analisa o desafio da gestão de pessoas nesse contexto?

Antonio Isidro – Os desafios do setor público no Brasil e no mundo na atualidade têm demandado capacidades governamentais de resposta ágil e efetiva aos problemas complexos que se agravam com o avanço das tecnologias e, mais especificamente, com os impactos da pandemia da COVID-19 na sociedade e nos diferentes níveis de governo.

O atual Secretário de Estado da Saúde e Assistência Social do Governo Inglês, Matthew Hancock, em 2016 era Ministro do Gabinete e Tesoureiro Geral do governo e falou ao blog do Serviço Civil da Inglaterra sobre a transformação do setor público, conforme transcrevo a seguir:

“Este é um grande momento para reunir tudo o que temos feito, para comemorar o que alcançamos, mas também para olhar para frente os desafios que temos que enfrentar. Temos uma grande equipe agora no governo que impulsiona a agenda digital. Temos uma aceitação cada vez maior em todas as partes do setor público de que essa é uma missão crítica. Cada vez mais sabemos como fazer isso e hoje estamos reunindo todas essas coisas para dar o próximo passo.

O digital está mudando a forma como entregamos cada parte do governo, então vamos entender como isso funciona e ter certeza de que tudo o que fazemos aproveite o melhor que a tecnologia pode oferecer.

O próprio Serviço Civil usa tecnologia o tempo todo e temos que garantir que a tecnologia seja de ponta. Precisamos de mais pessoas com habilidades digitais e de tecnologia entrando no Serviço Público para desempenhar um papel na missão que temos de melhorar o país. Mas, também precisamos ter certeza de que todos no funcionalismo público entendam o poder da transformação digital. Portanto, há um grande exercício de treinamento a fazer, muitas das melhores práticas que temos que espalhar e temos que trazer pessoas que viram isso em primeira mão em outro lugar. Já percorremos um longo caminho no caminho que está indo na direção certa e agora precisamos empurrá-lo para um novo nível.” (tradução nossa).

(https://civilservice.blog.gov.uk/2016/02/12/a-digital-civil-service-a-message-from-matthew-hancock/ )

O conteúdo da mensagem é bastante atual e aderente o caso brasileiro, pois estamos vivenciando importantes transições de paradigmas tecnológicos no governo. Mas, ao meu ver, ainda estamos no início de um processo mais profundo de transformação. O próximo nível de mudança estrutural vai implicar em novos paradigmas organizacionais, gerenciais e de comportamento humano no trabalho. Soma-se a isso os desafios impostos pela urgência de medidas de austeridade fiscal permanente, pelo envelhecimento populacional global que, por consequência, diminui a renovação dos quadros de pessoal das organizações públicas, e pela própria pandemia de COVID-19. Em resumo, estamos diante de um cenário inescapável de mudanças urgentes na forma como fazemos as coisas no setor público.

Como a gestão de pessoas vai responder a tudo isso? Não há resposta pronta, tampouco simples. Mas, há caminhos que nos levam a construir respostas possíveis com o foco em um futuro desejável. Organizo minha análise a partir de dois referenciais atuais que têm contribuído para a transformação no setor público: Novo Serviço Público e Agilidade Organizacional.

O primeiro caminho a percorrer é o resgate do sentido último dos serviços públicos na atualidade. Para isso, recorro à abordagem do Novo Serviço Público (NSP) preconizada por Denhardt e Denhardt (2015)[1], os quais afirmam que a essência dos serviços públicos é criar oportunidades para cidadania, estabelecendo relações de confiança com a sociedade. Em termos práticos, estabelecer relações de confiança implica no compartilhamento de interesses e de responsabilidades, e na colaboração mútua para a criação de soluções que gerem valor às partes envolvidas. Em outras palavras, o NSP enfatiza a expressão “fazermos juntos aquilo que não conseguimos fazer sozinhos”. Governo, mercado e sociedade não resolvem os problemas sozinhos.

O engajamento do cidadão nos processos decisórios públicos frequentemente produz decisões mais sensíveis ao contexto e mais robustas em termos conteúdo, contribuindo diretamente para a solução de conflitos, para a construção de relações de confiança e para educar e formar a sociedade. Tem-se, portanto, relações de poder mais horizontalizadas, instrumentos compartilhados de decisão e de mobilização de recursos, e o transbordamento dos efeitos da colaboração para todos os atores envolvidos.

Á luz dos princípios descritos anteriormente, penso que a Gestão de Pessoas no setor público tem a importante missão de transformar o modo como se organiza e como opera as políticas e processos de gestão na atualidade. Implica dizer que é papel da Gestão de Pessoas construir relações duradouras de confiança com servidores públicos, resgatando propósitos e sentidos que se conectam com as missões institucionais das organizações públicas. Deve-se enfatizar que a razão última do trabalho humano é transformar direta ou indiretamente a vida das pessoas. Assim, não se pode, ainda, acreditar que as atribuições de um cargo ou de um posto de trabalho serão suficientes para imbuir os servidores públicos de um significado maior no trabalho. A conexão direta entre o esforço no trabalho e os impactos na sociedade deve ser a mola propulsora das relações de trabalho no setor público.

Outro ponto que merece destaque é a transversalização ou distribuição de relações de poder e de tomada de decisão que as organizações modernas buscam como premissa de gestão e de sustentabilidade no mercado. No setor público, a Gestão de Pessoas como agente de transformação das organizações implica em flexibilizar seu modo de atuação, dando mais ênfase em práticas compartilhadas de gestão e menos ênfase em atribuições de uma unidade de pessoal centralizada. Fazer gestão de pessoas é atuar em colaboração constante com gestores e servidores na busca de melhores práticas que resultem em ganhos de produtividade e de bem-estar no trabalho. As políticas de gestão de pessoas são fruto da construção coletiva que integra interesses diversos e consolida-os numa visão de longo prazo que fortalece o sentido no trabalho compartilhado por todos.

O segundo caminho a percorrer é o resgate da Agilidade Organizacional na atualidade para além de modismos. Para isso, recorro às assertivas de Linda Holbeche (2018)[2] acerca do princípio de agilidade nas organizações. Uma das maiores contribuições da agilidade para as organizações nos dias de hoje é fazer com que a gestão do trabalho seja mais orientada à realização de desafios de maior sentido e significado para as pessoas, consolidando equipes e organizações de excelência na gestão e na entrega de serviços. Ser ágil é sinônimo de impacto positivo!

Em termos práticos, a Gestão de Pessoas em tempos de agilidade enfatiza seus esforços no sentido de fortalecer 4 capacidades organizacionais: estratégia, operações, pessoas e interação. Fortalecer a estratégia significa a gestão de pessoas gerar equipes multifuncionais empoderadas e comprometidas com a agilidade, formar líderes participativos em processos estratégicos, envolver múltiplas gerações nos processos de decisão e de comunicação. Fortalecer operações significa a gestão de pessoas desenvolver equipes e práticas de trabalho de alto desempenho (papéis com alto grau de autonomia, empoderamento e indicadores de desempenho baseados em resultados). Fortalecer as pessoas significa a gestão destas ser capaz de estabelecer e operar processos mais ágeis de gestão do trabalho, enfatizando as pessoas certas no local certo. Por fim, fortalecer a interação significa a gestão de pessoas ser capaz de desenvolver competências de colaboração, cooperação e interação em toda a organização para estabelecer relações internas e externas ágeis.

A Gestão de Pessoas enquanto espaço de atuação e papel profissional é importante agente de mudança e parceiro estratégico com objetivo de tornas as organizações públicas capazes de pensar e executar práticas e rotinas de forma ágil e ética, de inovar e de implementar processos e práticas de forma ágil, fazer com que pessoas e organização se relacionem de forma justa e recíproca, e de colaborar com seus servidores, clientes e stakeholders.

EP – Muitos órgãos públicos têm contratado servidores públicos temporários ou terceirizados. Na sua visão, como esse tipo de contratação pode impactar na gestão dos recursos humanos dos órgãos públicos brasileiros?

AI – A diversificação de portfólio está para Finanças e Investimento, assim como a diversidade da força de trabalho está para Gestão de Pessoas. Essa analogia é baseada no princípio evolucionário da variação, o qual contribui para a perpetuação de capacidades de adaptação e mudança. Os diferentes meios de contratação de servidores públicos oferecem ao Estado e aos governos múltiplas alternativas de composição e recomposição da força de trabalho em tempos de incerteza e de austeridade fiscal.

Entretanto, deve-se ter em mente princípios destacados anteriormente como engajamento, colaboração, confiança, agilidade e impacto. Meios mais flexíveis de contratação podem dar fôlego e agilidade aos quadros de pessoal do setor público, desde que o perfil da força de trabalho ingressante seja orientado ao saneamento de lacunas de competências emergentes no mundo do trabalho digital. Em outras palavras, as administrações públicas podem experimentar, testar e avaliar variados perfis profissionais e seus impactos na produtividade a partir da contratação mais flexível de servidores públicos. Ressalta-se que essa estratégia só funciona com o devido planejamento estratégico e de transformação digital do governo. Caso contrário, corre-se o risco de se implementar meios de contratação que podem ensejar a precarização das relações de trabalho e do desempenho técnico em processos organizacionais críticos à prestação de serviços públicos de qualidade.

O desafio das contratações profissionais no setor público tem sido retratado em pesquisas e documentos técnicos no mundo. Destaca-se o estudo “The Future of Work in Government” realizado pela Deloitte publicado em 2019. Segundo a obra, a rigidez de descrições de cargos no setor público tornou cada vez mais difícil a atração e a retenção de talentos e competências nas organizações públicas. Infere-se que, daqui para frente, o trabalho será continuamente redesenhado e as capacidades de que as pessoas precisarão deverão incluir aprendizagem e reinvenção contínuas. Em resposta a esse desafio, o setor público deve mudar os critérios de contratação, focando menos em habilidades e experiências específicas e enfatizando mais as competências e as capacidades relacionadas ao trabalho. Espera-se, segundo o estudo, criar uma força de trabalho adaptável que evolui junto com as novas tecnologias.

O estudo da Deloitte mostra ainda que, no mundo da colaboração homem-máquina, muitos servidores precisarão de treinamento constante antes que possam se beneficiar de oportunidades profissionais que as novas tecnologias estão criando. Em outras palavras, conforme a natureza do trabalho muda, a requalificação e qualificação podem ajudar os servidores públicos a mudarem para posições profissionais de maior valor social e organizacional. Assim, dispor de múltiplos meios de (re)composição da força de trabalho pode contribuir para a capacidade de resposta das administrações públicas perante os desafios da transformação digital no setor público.

EP – Na sua visão, quais seriam as melhores alternativas para o aperfeiçoamento da avaliação de desempenho dos servidores públicos no Brasil?

AI – A avaliação de desempenho é uma das áreas de prática da Gestão de Pessoas que se destaca fortemente em relação às interações, percepções e sentimentos que líderes e liderados compartilham nas organizações. Um dos trabalhos seminais acerca da relação entre avaliação de desempenho e employee experience[3] é o artigo de Elaine Farndale e Clare Kelliher publicado em 2013 na Human Resource Management com o título “Implementing Performance Appraisal: Exploring The Employee Experience”. As autoras mostram que, embora a avaliação de desempenho se proponha a ser um processo contínuo de identificar, medir e desenvolver o desempenho e alinhá-lo com os objetivos estratégicos da organização, há uma necessidade de explorar como as práticas de avaliação de desempenho são realmente vivenciadas pelos, a fim de compreender como elas afetam os comportamentos e atitudes no trabalho.

Como resultado da pesquisa, Farndale e Kelliher mostram que no contexto específico da avaliação de desempenho constatou-se que as percepções de justiça processual e interacional nesse processo têm uma relação significativa com o comprometimento organizacional. Esse resultado reforça que quanto mais bem estruturada e justa é a avaliação de desempenho, maior será o comprometimento das pessoas no trabalho. Em adição, as autoras afirmam que uma das atribuições mais críticas de líderes nas organizações é a avaliação e o acompanhamento do desempenho no trabalho.

De posse desses dados, algumas reflexões e possibilidades de aplicação surgem como alternativas gerenciais para melhoria da avaliação de desempenho no setor público. Há que se reconhecer, inicialmente, que pouco se inovou sobre o tema no contexto público nas últimas décadas no Brasil. As avaliações ainda carecem de regulamentação e de operacionalização em termos de métodos e técnicas apropriados para o cumprimento de seus objetivos. Isto posto, cabe identificar oportunidades de inovação em avaliar e gerir o desempenho de servidores públicos.

Um artigo publicado por Jinseok Chun, Joel Brockner e David De Cremer na Harvard Business Review Brasil, em 31 de julho de 2018, intitulado “As pessoas não querem ser comparadas aos outros em avaliações de desempenho. Elas querem ser comparadas a si mesmas” mostra algumas evidências importantes acerca de melhorias na avaliação que tendem a gerar uma experiência positiva para quem participa do processo. Segundo os autores

“A justiça é fundamental para melhorar a experiência dos funcionários, gerando inúmeros benefícios, como satisfação profissional e comprometimento com a empresa. Quando as pessoas acreditam que os resultados da avaliação são fiéis ao seu desempenho, tendem a achá-la justa. Contudo, a percepção de justiça envolve outros elementos. Mais especificamente, os funcionários consideram o processo de avaliação mais justo quando se sentem incluídos e respeitados, quando a avaliação é fidedigna e conduzida com base em princípios éticos e morais. Quando veem justiça no processo, costumam aceitar os resultados, o que leva a compreensão e automotivação”.

Tem-se, portanto, alguns valores indispensáveis a serem destacados: justiça, engajamento, respeito, ética, confiabilidade. Assim, as avaliações de desempenho devem buscar se apoiar nesses valores a fim de gerarem impactos positivos nas pessoas e nas organizações. No setor público não deve ser diferente e os diferentes princípios deontológicos dos dispositivos legais acerca do tema reforçam esses valores.

Jinseok Chun, Joel Brockner e David De Cremer definem dois tipos de parâmetros nas avaliações de desempenho: avaliação temporal comparativa e avaliação social comparativa. A avaliação temporal comparativa é aquela em que o desempenho atual é comparado ao desempenho anterior, avaliando se houve evolução (ou não) do desempenho no trabalho ao longo do tempo. A avaliação social comparativa é aquela em que a comparação do desempenho é feita avaliando o quanto a pessoa se destacou (ou não) em relação aos outros colegas de trabalho. Os autores mostram que as pessoas julgam a avaliação temporal comparativa mais justa que a avaliação social comparativa. Assim, tem-se uma oportunidade importante de tornar a avaliação de desempenho uma ferramenta de autoconhecimento e de automotivação para a aprendizagem e melhoria contínuas.

Trago, ainda, alguns princípios importantes que Josh Plaskoff[4] estabelece para a experiência das pessoas com as políticas e práticas de gestão de pessoas nas organizações. Percebo que são princípios ou diretrizes para a atuação da Gestão de Pessoas e destaco alguns deles que julgo pertinentes para a avaliação de desempenho. O primeiro deles refere-se ao compreender profundamente as pessoas e suas necessidades. É estabelecer contatos profundos e empáticos para que políticas e práticas sejam desenhadas e implementadas de forma aderente às necessidades das pessoas. Avaliações de desempenho são instrumentos importantes que contribuem para um melhor entendimento do comportamento humano no trabalho.

O segundo princípio que destaco é o insistir na participação radical. Isto é, participação radical significa ser ampla, multinível e igualitária, permitindo que as pessoas se engajem para cocriar soluções no trabalho. Quanto mais as avaliações de desempenho são participativas, mais as pessoas tendem a confiar nos instrumentos, métodos e no processo, reduzindo a resistência à mudança e aumentando o envolvimento e o compromisso na busca de melhores patamares de desempenho no trabalho.

EP – Se você tivesse que apontar três tendências para a gestão de pessoas no setor público brasileiro nos próximos cinco anos, quais seriam? E por quê?

AI – Os próximos 5 anos serão desafiadores em termos de Gestão de Pessoas e no mundo do trabalho Pós-COVID 19. O relatório publicado em fevereiro deste ano pela McKinsey Global Institute intitulado “The future of work after COVID-19” aborda o mundo do trabalho impactado pela pandemia do novo coronavírus e as tendências aceleradas por esta trágica doença que assola o planeta. Três tendências são destacadas no relatório: trabalho remoto, digitalização e automação. No que tange o trabalho remoto, a pesquisa mostra que entre 20 e 25% dos trabalhadores em economias dos países pesquisados poderiam trabalhar remotamente 3 dias ou mais por semana numa perspectiva de longo prazo. Acerca da digitalização, a pesquisa mostra que as plataformas de e-commerce crescem de 2 a 5 vezes mais do que as plataformas digitais. Sobre a automação, a pesquisa mostra o aumento consistente no uso de robótica, automação de processos robóticos e inteligência artificial em diferentes setores de atividade produtiva.

Esses dados publicizados pela McKinsey Global Institute dão o tom das mudanças em termos de força de trabalho nos próximos anos: aumento das transições profissionais para ocupações mais complexas e mais digitais as quais serão fortemente demandadas no mercado; diminuição de demandas de mercado por trabalho de baixa complexidade e menos digitais. O cenário descrito induz gestores e formuladores de políticas públicas a mobilizarem esforços para construir uma infraestrutura digital do mercado de trabalho (público e privado), habilitar a requalificação da força de trabalho de forma mais rápida e com foco em competências digitais, e inovar em novos benefícios e mecanismos de suporte organizacional à força de trabalho. Percebe-se, portanto, duas tendências que percebo que se concretizarão na Gestão de Pessoas no setor público brasileiro: a) desenvolver estratégias e capacidades para mitigar o impacto da COVID-19 sobre servidores públicos e para promover o equilíbrio entre ambientes de trabalho remotos e abordagens mais tradicionais de gestão de pessoas, balanceando a gestão baseada em cargos tradicionais ao passo em que intensifica o uso de práticas flexíveis e tecnologias digitais de trabalho; b) desenvolver estratégias e capacidades de diversificação e de inclusão da força de trabalho, visando atrair e reter um perfil de servidores públicos do futuro, e tornar a força de trabalho mais diversificada e inclusiva para que haja um esforço de mitigação dos impactos econômicos, sociais e de saúde que a COVID-19 tem causado sobre grupos raciais e étnicos específicos no Brasil.

A terceira tendência que observo está em linha com o que tem sido discutido em outros países acerca da sustentabilidade das políticas de gestão de pessoas numa perspectiva de médio e longo prazos. De modo geral, o setor público precisará construir planos de carreira baseados em dois pilares importantes: amplitude de experiência e profundidade de especialização. Ou seja, os servidores públicos buscarão organizações e carreiras estruturadas em bases consistentes de evolução profissional a partir da vivência de múltiplos desafios, ao mesmo tempo em que têm autonomia para tomar decisões e aplicar saberes e competências especializadas no contexto do trabalho. Assim, a Gestão de Pessoas deverá ampliar suas ferramentas de gestão e de tomada de decisão acerca da força de trabalho. Destaca-se a urgência da formulação de planos de aposentadoria com sustentabilidade fiscal, da revisão e da implementação de planos emergenciais de assistência à saúde de servidores públicos frente aos impactos da pandemia do novo coronavírus, da formulação de planos de carreira focados na evolução profissional baseada na ampliação horizontal e vertical de repertórios técnicos e comportamentais que sustentam o desempenho de excelência no trabalho.

EP – Quais competências serão necessárias para lidar com os impactos da transformação digital e da COVID-19 no setor público?

AI – No diapasão das tendências comentadas anteriormente, tenho pesquisado e acompanhado a produção científica sobre competências no Século XXI. Muitos estudos indicam competências com diferentes ênfases e comportamentos, mas percebo que há elementos comuns nas diferentes formulações. Organizo essa análise na Figura 1 apresentada a seguir.

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Figura 1: Perspectivas organizativas das competências do servidor público do Século XXI.

As competências se organizam de acordo com 2 eixos: Perspectiva Temporal (Futuro – Presente) e Perspectiva Estratégica (Negócio – Pessoas). As duas perspectivas são simultâneas e fundamentam-se na ambidestria organizacional[5]. A primeira perspectiva caracteriza-se por orientar as competências para os desafios futuros e atuais, ensejando repertórios comportamentais que habilitam pessoas e equipes a lidarem com diferentes fatores organizacionais e contextuais simultâneos que incidem sobre o trabalho. A segunda perspectiva caracteriza-se por orientar as competências para aspectos técnicos e humanos que coexistem nas organizações, ensejando repertórios comportamentais que contribuem para a construção de relações de reciprocidade e de confiança entre pessoas e organização, bem como para a consolidação de uma cultura de excelência, produtividade e bem-estar no trabalho.

A combinação das Perspectivas Temporal e Estratégica resulta em quatro quadrantes que organizam as diferentes ênfases ou focos que as competências expressam no contexto do trabalho, a saber: Foco em Transformação, Foco em Mudança, Foco em Resultados e Foco em Relacionamentos. As competências com foco em transformação enfatizam comportamentos que habilitam pessoas e equipes a conduzirem processos de transformação organizacional orientada às tendências que se consolidam no contexto da organização. As competências com foco em mudança enfatizam comportamentos que habilitam pessoas e equipes a conduzirem processos de mudança comportamental necessária para sustentar diferentes estratégias de transformação organizacional frente às contingências do ambiente. As competências com foco em resultados enfatizam comportamentos que habilitam pessoas e equipes a entregar e sustentar o desempenho de excelência no trabalho. As competências com foco em relacionamentos enfatizam comportamentos que habilitam pessoas e equipes a construir e consolidar uma cultura de confiança, de colaboração e de bem-estar no trabalho, gerando ambientes organizacionais mais humanizados e saudáveis em todos os sentidos. As competências que compõem os quadrantes descritos anteriormente são descritas na Figura 2 a seguir.

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Figura 2: As 8 competências do servidor público do Século XXI.

A competência Inovação caracteriza-se por comportamentos como solucionar problemas de forma colaborativa e criativa no trabalho, gerar e testar diferentes ideias no trabalho, implementar soluções inovadoras no trabalho, compartilhar ideias e inovações no ambiente de trabalho. A competência Fluência Digital caracteriza-se por comportamentos como utilizar tecnologias digitais no desempenho do trabalho, identificar novas tecnologias digitais e sua utilidade no trabalho, utilizar diferentes mídias digitais com sabedoria, segurança e ética.

A competência Aprendizagem Contínua caracteriza-se por comportamentos como buscar novas oportunidades para aprender algo novo, reconhecer problemas como desafios e oportunidades para aprender coisas novas, aprender com os próprios erros e com os erros dos outros, encorajar-se a aprender constantemente no trabalho. A competência Flexibilidade Comportamental caracteriza-se por comportamentos como adaptar-se às mudanças constantes no trabalho, agir conforme a especificidade das situações, mudar o curso de ação no desempenho no trabalho, reconhecer alternativas de comportamento que levem a resultados efetivos.

A competência Trabalho em Equipe caracteriza-se por comportamentos como reconhecer e solucionar conflitos interpessoais de forma colaborativa, compartilhar objetivos e responsabilidades no desempenho do trabalho, realizar escuta ativa e não avaliativa dos membros da equipe, colaborar continuamente com os demais membros de equipe. A competência Foco no Usuário caracteriza-se por comportamentos como reconhecer as necessidades e expectativas do usuário dos serviços, priorizar a experiência do usuário na entrega de serviços, identificar múltiplos fatores que influenciam o comportamento do usuário, reconhecer o ponto de vista do usuário no planejamento do serviço.

A competência Inteligência Emocional caracteriza-se por comportamentos como perceber acuradamente, avaliar e expressar emoções de forma assertiva, reconhecer e/ou gerar sentimentos que facilitam o pensamento, compreender a emoção e o conhecimento emocional, controlar emoções para promover o crescimento emocional e intelectual. A competência Comunicação Simples caracteriza-se por comportamentos como usar efetivamente comportamentos de comunicação em um dado contexto, traduzir efetivamente pensamentos em palavras, compatibilizar a mensagem de acordo com as características do receptor, reconhecer a congruência entre a mensagem, o canal e os objetivos do emissor.

A Gestão de Pessoas no setor público, à luz das 8 competências descritas anteriormente, deve implementar práticas inovadoras abordagens colaborativas de gestão para atrair e reter pessoas mais qualificadas e preparadas para lidar com os desafios impostos pela transformação digital e pelos impactos da COVID-19. Os desafios são muitos, mas o setor público conta com servidores apaixonados pelo que fazem e comprometidos com a geração de valor público e impacto social. A sustentabilidade da Gestão de Pessoas no setor público do Século XXI depende fortemente de um ecossistema de inovação e colaboração entre múltiplos atores para o desenvolvimento e a implementação de políticas e práticas de gestão mais assertivas, inclusivas e humanizadas. Portanto, temos muito trabalho pela frente! Mãos à obra!

 

Antonio Isidro é Pós-Doutorando em Inovação Pública (USP), doutor e mestre em Administração formado pela UnB, MBA em Gestão de Pessoas pela FGV (2004) e Psicólogo formado pelo CEUB. Tem formação internacional em Gestão pela École des Hautes Études Commerciales (HEC/Université de Montréal) no Canadá. Coordenador do Labortório de Inovação e Estratégia em Governo da UnB (LineGov|UnB). Professor Associado no Departamento de Administração e no Programa de Pós-Graduação em Administração da UnB. Tem experiência acadêmica e profissional nas áreas de Gestão da Inovação, Gestão Estratégica, Gestão por Competências, Liderança e Desenvolvimento Gerencial. Autor de livros, capítulos de livros e artigos científicos no Brasil e no exterior.

[1] Denhardt, J. V. & Denhardt, R. B. (2015). The New Public Service Revisited. Public Administration Review, vol. 75, n. 5, pp. 664–672. DOI: 10.1111/puar.12347.

[2] Holbeche, L. (2018). The Agile Organization: How to Build an Engaged, Innovative and Resilient Business. London: Kogan Page.

[3] Josh Plaskoff afirma que a experiência do empregado pode ser entendida como uma jornada com muitos marcos e interações, na qual a qualidade das experiências do empregado tem influência direta na satisfação, no engajamento, no compromisso e no desempenho no trabalho. Referência: Plaskoff, J. (2017). Employee experience: the new human resource management approach. Strategic HR Review, vol. 16, n. 3, pp. 136-141.

[4] Plaskoff, J. (2017). Employee experience: the new human resource management approach. Strategic HR Review, vol. 16, n. 3, pp. 136-141.

[5] Ambidestria organizacional é a capacidade de uma organização melhorar simultaneamente sua habilidade de inovar e de otimizar produtos e serviços. Referência: Gieske, H. Duijn, M. & van Buuren, A. (2020). Ambidextrous practices in public service organizations: innovation and optimization tensions in Dutch water authorities. Public Management Review, vol. 22, n. 03, pp. 341-363.