Caros leitores!
Muito já foi dito e escrito sobre Brasília. Para quem nela não vive, ficam essas referências. Apenas a imersão na atmosfera da capital nos foi capaz de despertar uma verdadeira admiração pela cidade, nos levando a meditar profundamente sobre a capacidade do governo central em reinstalar a sua sede, vencendo obstáculos e resistências físicas de grande monta, assim como as resistências culturais igualmente desafiadoras.
Nos referimos à disposição em romper simbolica e concretamente com o Brasil “do passado”. Um Brasil sediado nos litorais, com suas ruas buscando inspiração nas metrópoles europeias, embebido no tempo colonial. A capital foi moldada pela mente e pelos braços de homens e mulheres que plasmaram no meio do cerrado uma visão de um novo país: organizado, moderno, sustentável (ou o mais próximo disso que pudesse se conceber há mais de meio século). O Brasil do futuro!
A externalização de nossa admiração pelo esforço de construção e modernização estatal vai encontrar vazão na forma de uma nova coluna autoral que é agregada ao Ementário de Gestão Pública: In Loco. Seu objetivo é estar no local – conhecer os órgãos e entidades que compõem o aparelho do Estado sob um enfoque menos formal, procurando captar boas práticas, aspectos culturais e proporcionar reflexões aos leitores sobre o objeto de nossas atividades profissionais e acadêmicas: a administração pública!
Uma discussão madura, com densidade, mas descontraída e franca sobre a nossa visão da administração pública empreendida in loco – onde ela acontece, para ser lida com uma boa dose de café. Esperamos contar com as impressões dos leitores sobre a iniciativa!
E, por favor, convide-nos para uma visita à sua organização! Assim geramos pautas positivas e também contribuímos para a desmistificação dos estereótipos negativos associados ao serviço e ao servidor público. Acreditamos que nós, os profissionais da administração pública, devemos nutrir um orgulho saudável – e não vergonha – de nossa cultura organizacional.
A Imprensa Nacional
Nossa primeira visita não poderia ser mais emblemática. A Imprensa Nacional é uma instituição bicentenária, talvez a mais representativa de nossa burocracia, tão criticada por suas disfunções e paradoxalmente tão pouco compreendida. Dela o Ementário é um ávido consumidor, tendo em vista os treze anos ininterruptos de curadoria de diários oficiais por nós aqui registrados.
Mas o que são treze anos diante de uma organização com duzentos e dez anos? A Imprensa Régia, fundada em 13 de maio de 1808, pode ter sua história projetada para alguns meses antes, quando do embarque da corte portuguesa no translado para a então colônia brasileira. Na ocasião, os artefatos de impressão da metrópole foram embarcados na nau Medusa, integrante da esquadra que atravessou o atlântico escoltada pela Marinha Inglesa.
A Imprensa Nacional é a estrutura organizacional que materializa diariamente o princípio constitucional da publicidade. É por meio do trabalho de seus funcionários que as diversas manifestações do Estado passam pela última etapa do processo de ingresso no ordenamento jurídico.
A sede de nossa indústria gráfica estatal esconde um tesouro muito bem cuidado sob a paisagem de concreto e asfalto dominante. Espaços amplos e horizontais intercalados com diversas espécies de árvores que oferecem sombras ao estacionamento, aos pedestres e aos espaços de convivência externos não dão dicas ao visitante de que transita em área industrial.
Muitas das árvores foram mudas plantadas e cuidadas pelos próprios servidores da casa, que parecem valorizar e cuidar desse patrimônio sem tombamento, mas inalienável para a instituição.
A Assessoria de Controle Interno
Interessante destacar a iniciativa da Imprensa Nacional no campo do controle interno. A organização não possui personalidade jurídica, e ao contrário do que muitos imaginam, integra a administração direta, compondo a estrutura organizacional da Casa Civil, não estando obrigada por força do art. 14 do Decreto nº 3.591/2000 a instituir unidade de auditoria interna, atribuição cumprida pela Secretaria de Controle Interno da Presidência da República. Nada obstante, sobreveio a decisão estratégica de constituir uma Assessoria de Controle Interno (ACI). Atuando na segunda linha de defesa, a ACI entrega para a alta direção da Imprensa assessoramento estratégico em governança, riscos, controles internos e integridade.
A atualidade nos apresenta organizações públicas que vivem momentos de transição no tocante ao alinhamento a um modelo de gestão direcionado para uma lógica de governança, riscos e controles internos. Nesse contexto, a departamentalização de assessorias, com atribuições de segunda linha de defesa, como a supervisão das políticas de controle setoriais, identificação e desenvolvimento de insights estratégicos (como, por exemplo, a perda potencial de oportunidades de negócio, de economias de escala no uso dos recursos, etc), capacitação de servidores em temas com pertinência temática pode contribuir bastante para a alavancagem de boas práticas de gestão.
Produção, editoração e divulgação
A área de produção da IN teve que se reinventar com o fim dos jornais impressos. A decisão não é recente e foi um processo paulatino, que envolveu o realinhamento do planejamento estratégico da organização. A declaração de sua missão institucional deixa essa transição bem clara:
Publicizar e realizar a gestão do conhecimento sobre as informações dos atos oficiais para a sociedade e prestar serviços gráficos estratégicos à Administração Pública Federal.
Para agregar valor à sua atividade e manter a relevância estratégica de uma instituição que remonta ao período colonial, foi necessário absorver as inovações tecnológicas que vêm impactando nossa rotina, nos fazendo aos poucos abandonar o papel, forçando a Imprensa nacional a promover mudanças profundas nos objetivos a serem atingidos. Duas questões essenciais se colocam, para tanto:
1) Informação versus Conhecimento. A manutenção da relevância ao deixar de imprimir em papel os diários passou acertadamente por qualificar o manejo das informações tratadas, passando a trabalhar com a gestão do conhecimento veiculado, superando uma visão de mero suporte difusor de informações. A Imprensa avança a passos largos em projetos e parcerias relativas à criação de bancos de dados estruturados e integração efetiva aos processos legislativo e normativo, que já tramitam por via eletrônica.
2) O que fazer com o parque gráfico? Desativá-lo e alienar os ativos ou desenvolver soluções racionais que tornasse atrativa a oferta de serviços gráficos aos órgãos e entidades da administração pública federal, atraindo “clientes” e investimentos para eventualmente centralizar a execução desses serviços quando demandados pelas instituições públicas, mesmo quando fosse necessário obter soluções junto ao mercado privado? A estratégia do órgão aponta para o segundo caminho. A gama de serviços gráficos oferecida é ampla e possui preços e condições competitivas.
Deve-se observar que na atividade de produção, mesmo antes do fim da versão impressa do Diário Oficial da União, a mentalidade de mensurar os custos integrais de propriedade versus os de tomada de serviço já encontrava espaço para ser aplicada em relação a equipamentos.
A pergunta fundamental que muitos de nós devemos fazer atualmente em sede de planejamento das contratações é: será que vale a pena adquirir bens, contratar serviços acessórios de manutenção, adquirir peças de reposição, insumos, arcar com os custos de depreciação e obsolescência do patrimônio ou, inclusive como um mecanismo de transferência de riscos e custos associados, contratar serviços integrados que envolvam locação ou comodato de bens, incluindo manutenção e suprimentos? Pois é! Gerenciar riscos da contratação muitas vezes envolve transferir parte deles para o particular, e remunerá-lo por isso, desde que exista uma racionalidade plausível na decisão.
A área industrial é grandiloquente. Os corredores são largos e o pé direito da construção é alto, como é característico da arquitetura fabril. O decréscimo da demanda por diários oficiais ao longo do tempo – estima-se que da década de 1970 às vésperas do fim dos diários impressos a tiragem diária tenha sido reduzida de uma centena de milhar para apenas seis mil – foi determinando a reocupação dos espaços.
Algumas áreas foram cedidas ao Arquivo Nacional e à Advocacia-Geral da União, por meio da contratualização entre essas organizações de um arranjo que envolve o rateio de despesas de consumo e, em maior ou menor medida, de serviços como limpeza e conservação. As compras públicas compartilhadas e a contratação de serviços que atendam a diversas organizações, quando adequadamente empreendidas, são elementos de racionalização e qualificação da despesa pública que aqui encontram bom exemplo.
Curioso notar uma característica específica da atividade gráfica, especificamente no tocante à extinção da versão em papel do DOU: enquanto que para a área de produção a mudança foi radical, importando em realinhamento da estratégia do órgão, a área de editoração não sofreu impactos notáveis. O produto de sua atividade simplesmente deixou de ser o conteúdo da atividade da área de produção.
Durante muito tempo, a Imprensa funcionou durante vinte e quatro horas por dia. A racionalização dos processos de trabalho, a gradual automatização de tarefas e a previsibilidade das atividades tornou possível o fechamento da unidade durante a madrugada. Não é raro, contudo, que surja a necessidade de publicação de edições extraordinárias, exigindo que os servidores atuem imediatamente para sua disponibilização.
O avanço das tecnologias da informação e comunicação da Imprensa Nacional é promissor. A instituição foi pioneira em disponibilização e regulamentação de dados abertos e está abrindo suas portas para iniciativas como o Laboratório de Transformação Digital da Imprensa Nacional, com a finalidade de desenvolver projetos de soluções tecnológicas de acesso aos atos oficiais publicados no Diário Oficial da União.
O Museu da Imprensa
A visita ao Museu da Imprensa mereceria uma postagem apartada, pela riqueza de seu acervo. Situado no pequeno complexo cultural ali instalado, compreendendo ainda as atividades do Auditório D. João VI e da Biblioteca Machado de Assis, o museu é uma referência para o turismo cívico brasiliense.
Com espanto, descobrimos que as expressões “caixa alta” e “caixa baixa” que usamos quando editamos um texto e queremos nos referir, respectivamente, às maiúsculas e minúsculas, decorrem da porção superior ou inferior da gaveta onde se armazenavam os tipos móveis.
Tivemos a oportunidade de acionar com as mãos que ora digitam o Prelo Machado de Assis, onde o patrono da Imprensa Nacional laborou como aprendiz de tipógrafo. Lá descobrimos que Imprensa manteve durante muitos anos uma escola técnica em sua estrutura, a Escola de Aprendizagem de Artes Gráficas do Departamento de Imprensa Nacional, que formou gerações de trabalhadores da indústria gráfica.
Conhecemos a história e as ferramentas de trabalho da patrona das servidoras públicas brasileiras, a colega servidora Joana França Stockmeyer, que laborou na Imprensa Nacional de 1892 até a sua aposentadoria, na década de 1940. Joana foi a primeira mulher a ser admitida no serviço público brasileiro e o tipógrafo que operava para confecção dos tipos móveis encontra-se exposto no museu.
Diversas outras peças integram o Museu, dentre elas uma máquina de pautar folhas, material de metalurgia tipográfica, móveis diversos produzidos nas oficinas de marcenaria da Imprensa e uma charmosa caixa comemorativa do centenário da independência do Brasil.
Últimas palavras
Conhecer de perto o funcionamento de uma instituição como a Imprensa Nacional é um mergulho na história da administração pública brasileira. A história da revolução das informações que informa a nossa época pode ser remontada ao desenvolvimento da prensa móvel por Johannes Gutenberg. Imaginar que o Estado absolutista titularizava o monopólio de utilização desses engenhos é reconhecer a tese simplificada no aforismo de que “informação é poder”. Identificamos três elementos histórico-culturais que constituem essa inigualável organização estatal.
O primeiro diz respeito a um componente no caldo cultural da Imprensa que possui duzentos e dez anos de história – possivelmente mais se considerarmos as atividades no território da metrópole portuguesa que lhe deu origem. Poucas outras instituições públicas possuem tamanha resistência a todas as transformações pelas quais passou o Brasil em dois séculos. Elementos importantes de coesão e identidade institucional resistiram a distintas formas de governo, modelos de organização do Estado, conjunturas econômicas e sociais as mais diversas e lideranças e hegemonias políticas muita vezes diametralmente opostas umas das outras. Difícil pensar em outra organização tão resiliente às mutações ocorridas, o que faz da Imprensa Nacional uma verdadeira instituição de Estado.
O segundo elemento é estrutural. O modelo sobre o qual baseou-se a Imprensa comunica-se com os grandes projetos de desenvolvimento nacional das décadas de 1940 a 1960, contrastando uma certa ingenuidade no planejamento com uma visão de um Brasil futuro, sendo interessante notar que seria virtualmente impossível, à época, gerenciar o risco de um dia a sociedade e o próprio Estado não demandarem mais impressões no volume instalado, o que de fato ocorreu, e, não fosse a capacidade de manter-se necessária e relevante à sociedade, poderia ter resultado em sua extinção ou deslocamento para a iniciativa privada. Isso nos leva imediatamente a refletir sobre a segurança do prazo sobre o qual lançamos nossas especulações probabilísticas de planejamento e risco, mormente em tempos de mudanças tão rápidas.
Por fim, a modernidade. Oculta em linhas intermináveis de código e terabytes de dados, a organização se alinha com o que há de mais avançado em ciência de dados e inteligência de pesquisa com vistas a transformar em conhecimento o volume de informações que custodia nas páginas dos diários oficiais. Tornar esse conhecimento útil para a administração pública, melhorando a qualidade da informação disponível para a tomada de decisões, e também para o cidadão, para que exercite o controle social, são consequências lógicas desse trabalho.
A Imprensa Nacional é um órgão verdadeiramente único em nossa complexa ordem administrativa. Ali convivem, em plena expressão da natureza adaptativa típica de nossos costumes e hábitos fundamentais enquanto coletividade, a gênese colonial do Estado brasileiro, o passado desenvolvimentista e modernizador que influencia nossos rumos até hoje e o futuro que se descortina à frente, sobre o qual podemos apenas especular, gerenciando riscos a prazos razoáveis, sem que tenhamos nenhuma certeza sobre quais disrupções tecnológicas, comportamentais e existenciais estaremos testemunhando a seguir. O grande desafio do presente das organizações talvez seja justamente lidar com essa complexidade, levando em conta o trajeto já percorrido e a impossibilidade de enxergar muito adiante.
Por fim, nossos efusivos agradecimentos aos amigos que lá fizemos: Cláudio Hicks, Assessor de Controle Interno, que proporcionou a visita e nos recebeu com toda a cordialidade e entusiasmo; sua equipe, que nos ofereceu todo o apoio necessário; Bazílio, pela presteza e disposição em nos apresentar minunciosamente a produção; Helder e Symball, pelas esclarecedoras respostas às nossas inúmeras indagações; além de um agradecimento especial ao Rubens, Diretor do Museu da Imprensa, um daqueles servidores públicos que o Estado brasileiro nunca conseguirá substituir, por sua singular dedicação e imensa contribuição à memória social da administração pública brasileira.