EGP Entrevista: O papel da regulação e futuro das agências

Caríssimos e caríssimas!

A regulação é sempre um tema polêmico, do novo e promissor mercado de carbono até a inteligência artificial inúmeras são as controvérsias a que temos assistido. Por diversas vezes a atuação das Agências Reguladoras tem sido alvo de questionamentos por parte de atores políticos, sociais e econômicos. E no Brasil? Estamos prontos para esse debate? Para tratarmos dessas e outras questões, convidamos para uma entrevista duas das maiores referências no estudo da atividade regulatória no País, a doutora e mestra em direito pela Universidade de São Paulo e professora da FGV Direito Rio, Natasha Salinas, e o doutor em Administração pela Universidade de Brasília e servidor público em exercício no  Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), Flávio Saab.

A organização do trabalho foi feita pelo caríssimo Eduardo Paracêncio.

Flávio Saab: O que é regulação e por que esse tema gera debates e controvérsias entre diferentes atores políticos e sociais?

Natasha Salinas: É muito desafiador responder esta pergunta porque não há definição única, ou definitiva, de regulação. Uma obra de referência sobre regulação (BALDWIN, Robert & CAVE, Mart & LODGE, Martin. Understanding Regulation: Theory, Strategy and Practice. 2.ed. Oxford: Oxford University Press, 2012) ressalta o caráter polissêmico do termo, ao apresentar múltiplas concepções usuais de regulação.

Em uma delas, regulação equivale à promulgação de um conjunto de comandos (regras), implementados por um órgão específico, com o objetivo de direcionar o comportamento de indivíduos ou instituições. Ao mesmo tempo em que esta concepção é restritiva, já que reduz as estratégias regulatórias a comandos/regras que proíbem, permitem ou facilitam comportamentos, ela é também ampla, já que não deixa claro quem é o órgão regulador. Esta concepção é utilizada com frequência não só em trabalhos acadêmicos jurídicos, mas também em textos jornalísticos. Quando esses textos utilizam, expressões amplas como “regulação de transporte individual de passageiros”, ou “regulação das mudanças climáticas”, eles parecem se referir à produção de normas sobre um determinado tema pelo legislativo, executivo ou ambos.

Uma segunda concepção de regulação engloba um conjunto amplo de ações estatais destinadas a influenciar o comportamento de indivíduos e instituições. Nesta concepção, regulação não se refere apenas a comandos e regras, mas a qualquer forma de intervenção governamental no domínio privado. Ela compreende não apenas regras que restringem a autonomia de agentes econômicos, mas também toda uma gama de estratégias e técnicas capazes de influenciar, ao invés de proibir, comportamentos. A regulação compreende, portanto, o uso de técnicas alternativas às regras de comando e controle, como, por exemplo, incentivos econômicos (e.g. por meio de incentivos fiscais) para o exercício de determinada atividade desejada pelo regulador ou a obrigação de que o regulado informe aos consumidores os riscos envolvidos no uso ou consumo de certos bens e serviços. Via de regra, órgãos e entidades da administração pública, por razões variadas, possuem certas vantagens ao manusear o amplo cardápio de estratégias regulatórias, razão pela qual o termo regulação é muitas vezes associado apenas às normas/decisões administrativas. Ainda que, de fato, a administração pública seja o lócus mais adequado para produzir regulação, resta a dúvida sobre quais órgãos e entidades administrativas estariam aptos a exercer a atividade regulatória. Nesse sentido, frequentemente atribui-se a atividade regulatória apenas às agências reguladoras independentes criadas a partir da década de 1990 para regular diversos setores da economia. A Secretaria de Competitividade e Política Regulatória (SCPR) do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC), no entanto, considera que há, só em nível federal, 237 órgãos e entidades que exercem atividade regulatória. Embora possa haver divergências na definição do número total de órgãos reguladores federais (estudo recentemente apoiado pelo IPEA revelou haver, no âmbito federal, 146 órgãos), fato é que a atividade regulatória abrange um conjunto amplo de órgãos e entidades, de arranjos institucionais e capacidades variadas, cujas atividades regulatórias impactam e condicionam comportamentos privados do mesmo modo que o fazem as agências reguladoras. Desse modo, atribuir a atividade regulatória apenas às 11 agências reguladoras listadas na Lei nº 13.848/19 é tão inadequado, quanto ultrapassado.

Ao aproximarmos o conceito de regulação ao de “política regulatória”, aqui tratada como qualquer política pública cuja principal estratégia de implementação é a regulação, como política energética, política de transporte/mobilidade, política de saúde suplementar, política de vigilância sanitária, chegamos à conclusão de que nenhum órgão ou poder é responsável, sozinho, por sua formulação. Políticas regulatórias são resultado de interações – e disputas – constantes entre poderes, razão pela qual elas estão em constante mutação. Ainda que determinado órgão ou entidade da administração pública, como uma agência reguladora, por exemplo, possa exercer, em determinado momento histórico, poder de agenda sobre o conteúdo da regulação, a estabilidade desse poder é ilusória. As coberturas assistenciais do setor de saúde suplementar podem até ter sido definidas inicialmente pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), mas os poderes judiciário e legislativo têm restringido o poder da agência para, por exemplo, definir regras sobre atualização do rol e sobre exigibilidade de tratamentos. A regulação de risco à saúde, no Brasil, está à cargo da Anvisa, mas há inúmeros exemplos de iniciativas legislativas que buscam avocar competências normativas ou reverter decisões dessa agência em matérias tão variadas como medicamentos, pesticidas e, mais recentemente, cigarros eletrônicos.

Essas concepções reforçam o caráter estatal da regulação, mas hoje a expressão também é utilizada para se referir a normas/estratégias regulatórias não-estatais, tais como atores provenientes da sociedade civil e do mercado, que podem atuar individualmente ou em colaboração para regular indivíduos e instituições. Esses atores, por sua vez, podem tanto atuar em território nacional quanto em ambientes regulatórios internacional e transnacional.

Para além dos aspectos institucionais – que determinam quem regula – e dos aspectos instrumentais – que estabelecem quais devem ser as técnicas e estratégias regulatórias – falta também consenso sobre qual deve ser o objeto da regulação. Enquanto concepções mais restritivas enfatizam os aspectos econômicos da regulação, equiparando-a somente às técnicas e estratégias que visam corrigir falhas de mercado ou de governo, definições mais amplas incorporam as dimensões sociais da regulação, enfatizando os aspectos distributivos e redistributivos da regulação. Desse modo, não só a regulação econômica, mas também a regulação social, estaria abrangida pelo conceito de regulação.

FS: Notícias recentes têm veiculado críticas de ministros de Estado, Presidente da República e parlamentares à atuação de órgãos reguladores no país. Propostas de reformas regulatórias, que visem restringir a autonomia das agências, também têm sido aventadas. Esse tipo de crise tem precedentes no Brasil? Por que isso ocorre?

NS: As agências reguladoras instituídas a partir da década de 1990 foram dotadas de certa autonomia em relação aos outros poderes. Em termos organizacionais, agências reguladoras não estão subordinadas hierarquicamente ao poder executivo central. As decisões tomadas pelas diretorias colegiadas ou conselhos dessas entidades não são passíveis de revisão por ministros ou pelo Presidente da República. Além disso, diretores ou conselheiros de agências possuem mandatos fixos, não coincidentes com o mandato do chefe do poder executivo. Apenas situações excepcionais, como condenação penal transitada em julgado, por exemplo, podem ocasionar perda de mandato de diretores ou conselheiros de agências.

É importante que se diga que esse modelo de autonomia administrativa reforçada foi inspirado no modelo de “commissions” norte-americanas, como a Federal Communications Commission (FCC) e a Securities Exchange Commission (SEC). Aqui, cabe um esclarecimento terminológico: nos Estados Unidos, o termo “agency” é amplo, referindo-se a qualquer órgão ou entidade com competências regulatórias. A maior parte das agências norte-americanas não possuem autonomia em relação ao poder executivo central, sendo essa uma prerrogativa apenas das “commissions”. Já no Brasil, a expressão “agência reguladora” possui sentido específico, sendo utilizada apenas para se referir aos órgãos e entidades reguladoras com autonomia reforçada.

Agências reguladoras passaram a regular serviços públicos desestatizados, além de certas atividades econômicas consideradas estratégicas para o Estado. A escolha por um modelo de autonomia reforçada teve por objetivo principal sinalizar a potenciais investidores, sobretudo estrangeiros, que o Brasil passara então a oferecer um ambiente institucional estável para investimentos de longo prazo (sobre essa questão, vale a leitura do artigo “Credibility and the Design of Regulatory Agencies in Brazil”, de Bernardo Mueller e Carlos Pereira). Inicialmente adotado pela administração pública federal, essa estrutura organizacional foi paulatinamente sendo incorporada por autarquias estaduais, municipais, bem como por estruturas interfederativas (e.g. consórcios públicos).

Essa fórmula deu tão certo que toda vez que se discute a criação de um órgão ou entidade reguladora para regular setor ou atividade nova, normalmente se pensa no modelo de agência com autonomia administrativa reforçada (vide, por exemplo, notícias veiculadas no final do ano de 2023 para criação de uma agência reguladora para o ensino superior). Por outro lado, episódios como o recente apagão de energia elétrica de São Paulo são invocados para questionar esse mesmo modelo de autonomia reforçada das agências reguladoras.

Iniciativas para rever esse modelo não são propriamente uma novidade. Já no início do atual mandato do Presidente Lula, emenda parlamentar incluída no projeto de lei de conversão da Medida Provisória n.  1.154, que teve por objetivo reorganizar a estrutura da Administração Pública Federal, propôs transferir as funções de regulação e edição de atos normativos infralegais do colegiado das agências reguladoras para conselhos ligados a Ministérios e secretarias. A proposta de emenda foi rejeitada, mas caso tivesse sido aprovada, não apenas restringiria a autonomia das agências, mas lhes retiraria a própria função de regular.

O modelo de autonomia das agências não é estático, sendo que vem sofrendo transformações ao longo do tempo. A Lei nº 13.848/19 – também conhecida como Lei Geral das Agências (LGA) – foi uma lei de iniciativa do Congresso Nacional que corrigiu diversas distorções que terminavam por enfraquecer a governança das agências. Por exemplo, a LGA impediu que mandatos de diretores ficassem vagos por tempo indeterminado, o que terminava por tornar muitas agências inoperantes, e portanto, enfraquecidas, perante o poder executivo central.

No entanto, enquanto a LGA introduziu modificações visando reforçar a autonomia das agências reguladoras, anúncios governamentais recentes sinalizam o interesse do poder executivo de restringir essa autonomia por meio da alteração de regras de nomeação e demissão de dirigentes. 

FS: Uma reforma administrativa em curso no México também visa restringir a autonomia de diversas entidades reguladoras nacionais. Nos Estados Unidos, o precedente que instituiu a doutrina Chevron de deferência judicial às decisões regulatórias das agências foi derrubado por seis votos a três no recente caso Loper Bright Enterprises v. Raimondo. É possível afirmar que o Estado Regulador está em crise, e que esta crise é mundial?

NS: Esta é uma pergunta interessante, mas que não pode ser endereçada com respostas simplistas. O tipo de crise que parece estar em curso no México, e agora também no Brasil, gravita em torno da autonomia de agências reguladoras de serviços públicos concedidos e de atividades econômicas estratégicas. Em parte, ela é um reflexo da própria crise da prestação de serviços públicos em tempos de desastres naturais e climáticos, crises sanitárias, ciclos econômicos cada vez mais curtos e ampliação de riscos de toda a sorte. Nesse contexto, decisões de agências, assim como decisões de quem quer que seja, são passíveis de erros – muitos – de modo que são facilitados os meios para o poder executivo revê-las ou corrigi-las.

Nos Estados Unidos, a queda da doutrina Chevron não tem qualquer implicação no modelo de autonomia reforçada das “comisssions norte-americanas”, em nada se confundindo com elas. Chevron nada mais é do que uma doutrina acerca da atividade de interpretação promovida pelas agências americanas das leis que lhes são pertinentes. Estabelece um modelo deferente de controle judicial, compelindo o Poder Judiciário a aquiescer ao entendimento das agências em caso de ambiguidade dos textos legais, desde que a interpretação possa ser compreendida como “permissível”, ou em outras formulações, “razoável”.

Essa doutrina incidia sobre qualquer órgão ou entidade reguladora norte-americano, independentemente do seu nível de autonomia em relação ao poder executivo, de modo que a queda desse precedente afetou o Estado Regulador, ao menos em termos numéricos, de forma mais abrangente.

Ainda é cedo para avaliarmos as implicações da queda desse precedente, tanto nos Estados Unidos, como em outras partes do mundo. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal tem se mostrado particularmente deferente às decisões técnicas das agências. Houve até um período em que o STF considerava haver matérias sujeitas à reserva do regulador (e.g. a ADI n.º 5.501, que entendeu que o poder legislativo não poderia editar lei sobre a comercialização da fosfoetanolamina sintética – pílula do câncer – sob o fundamento de que a apreciação da matéria estaria reservada à Anvisa), o que impediria sua apreciação pelo próprio poder legislativo. Diferentemente dos Estados Unidos, portanto, o Estado Regulador não se vê ameaçado pelas instâncias superiores do judiciário. Muito pelo contrário: é possível que o Judiciário brasileiro venha, num futuro próximo, a ser instado a salvaguardar entidades e órgãos reguladores diante de interferências políticas indevidas.

FS: Na sua opinião, esse cenário de conflitos coloca em risco a atuação das agências reguladoras?

NS: A crise atual acarreta simultaneamente riscos e oportunidades. O principal risco é o de interferência política indevida dos demais poderes na atividade regulatória. A principal oportunidade é a de pensarmos num modelo de supervisão regulatória adequado para o Brasil.

Esse modelo deve incidir sobre todos os órgãos e entidades reguladoras – e não apenas as agências reguladoras listadas na Lei nº 13.848/19. Como observei em pergunta anterior, há pelo menos 146 órgãos reguladores federais no Brasil, de modo que propor a criação de um órgão de supervisão apenas para as 11 agências reguladoras listadas na Lei nº 13.848/19 é tão inadequado, quanto ultrapassado.

Além de definir qual deve ser o alvo da supervisão regulatória, precisamos definir quem deverá exercê-la. Um modelo adequado de supervisão regulatória deve, preferencialmente, centralizar as funções de supervisão em um ou poucos órgãos — esta foi, inclusive a recomendação da OCDE na revisão que realizou da política regulatória brasileira, em 2022.

Atualmente, a supervisão regulatória está a cargo da Secretaria de Competitividade e Melhoria Regulatória (SCPR) do Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio (MDIC), que acaba de lançar a estratégia nacional Regula Melhor e está comprometida em avançar a agenda de melhoria regulatória no país. Necessitamos, portanto, fortalecer o modelo de supervisão regulatória que estamos construindo no Brasil, dotando-lhe de funções bem delimitadas, capacidades institucionais adequadas e recursos financeiros suficientes. A proposta de criação de novos órgãos de supervisão, além de não solucionar o problema, tenderá, a meu ver, a agravar o problema de fragmentação na coordenação regulatória, gerando um efeito em cadeia: se a própria função de supervisão é fragmentada, o que dirá da atividade regulatória em si.

Por fim, a questão não menos relevante é definir quais deverão ser as funções de supervisão regulatória. Para a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), órgãos de supervisão regulatória, referidos pela organização como “Regulatory Oversight Bodies” (ROBs) exercem quatro funções principais: 1) controle de qualidade das ferramentas de melhoria regulatória (exemplos: rever a qualidade das análises de impacto regulatório, avaliações de resultado regulatório e consultas públicas); 2) orientação de órgãos e entidades reguladoras no uso dessas ferramentas; 3) coordenação de órgãos e entidades na implementação de políticas regulatórias; 4) avaliação sistemática da política regulatória de um país (essas funções estão elencadas no Regulatory Policy Outlook 2021, da OCDE).

Essas são as funções exercidas pelos órgãos de supervisão regulatória dos 38 países membros da OCDE, incluindo aquele que talvez seja o mais conhecido — o Office of Information and Regulatory Affairs – OIRA, vinculado à Presidência da República dos EUA. Esses órgãos não exercem controles hierárquicos e/ou interferências políticas sobre entidades reguladoras, sendo que isso independe do seu grau de autonomia funcional e administrativa. O OIRA, por exemplo, supervisiona os processos regulatórios apenas de agências “não independentes”, e o faz na condição de órgão de Estado, e não de governo. Ou seja, quando falamos de supervisão regulatória, não estamos falando de interferência e controle político, ao menos não para os órgãos de supervisão regulatória de maior destaque no mundo.

FS: A saída, então, está em supervisionar o uso das ferramentas de melhoria regulatória, e não o resultado das políticas regulatórias?

NS: Eu diria que a supervisão deve incidir diretamente sobre o uso das ferramentas de melhoria regulatória, mas ela termina por afetar o resultado das políticas regulatórias. Pressupõe-se que normas regulatórias bem planejadas, que se submetam a rigorosa análise de impacto regulatório e que sejam instruídas por mecanismos de participação social, tendem a satisfazer os mais amplos critérios de qualidade, e, assim, contribuem para bons resultados das políticas regulatórias.

FS: Mas o que são ferramentas de melhoria regulatória? Há uma tendência de convergência entre países acerca do uso dessas ferramentas?

NS: Uma política regulatória ou política de melhoria regulatória está estruturada em quatro premissas: (i) simplificação, (ii) planejamento, (iii) ampliação dos canais de participação da atividade regulatória; (iv) racionalidade dos processos regulatórios.

Um dos pilares de qualquer política de melhoria regulatória é a simplificação normativa, entendida como um conjunto de ações que se iniciam pela revogação de normas obsoletas, passam pela consolidação de regulações esparsas e terminam na sistematização e disponibilização, em portal único, de fácil acesso e compreensão, do conjunto de normas que compõem o estoque regulatório do país. No Brasil, esse processo de simplificação ganhou proeminência com a edição do Decreto nº 10.139/10, também conhecido por “revogaço”, que determinou que todos os órgãos reguladores federais deveriam revogar normas obsoletas, bem como revisar e consolidar normas em vigor. Este decreto foi substituído Decreto nº 12.002/24, que além de tratar da revisão e consolidação, também disciplina regras sobre elaboração de textos normativos. 

A melhoria regulatória também se estrutura no planejamento da atividade regulatória. Por meio da construção, de modo participativo e transparente, de agendas regulatórias, órgãos e entidades reguladoras devem comunicar, com a devida antecedência, as normas que pretendem regular, conferindo um cenário de previsibilidade e segurança às partes diretamente afetadas pela regulação. A LGA obrigou as agências reguladoras nela listadas a adotarem agendas regulatórias. Já o Decreto nº 11.243/22 que regulamenta acordo de comércio e cooperação econômica entre Brasil e Estados Unidos, estabeleceu que todos os órgãos e entidades reguladoras federais devem adotar agenda regulatória com periodicidade mínima de 2 anos. Esse decreto entrou em vigor em 9 de junho de 2024.

Mecanismos de participação ou engajamento de partes interessadas em processos regulatórios são um importante e indispensável instrumento de melhoria regulatória, pois conferem maior legitimidade e transparência às decisões regulatórias, ao mesmo tempo em que contribuem para um incremento da qualidade da regulação. Para as agências reguladoras federais o uso e a procedimentalização de mecanismos de participação foram incorporados ao processo regulatório de forma gradual. Inicialmente, as leis que criaram essas agências previram consultas públicas como etapa obrigatória do processo normativo. Em seguida, a LGA instituiu regras procedimentais gerais, aplicáveis a todas as agências reguladoras de modo indistinto, para a realização dessas consultas. A LGA instituiu regras novas, porém consagrou prática já existente: a de que as agências, antes de editarem normas, estariam obrigadas a submeter à consulta pública a minuta do texto normativo que pretendem adotar.  Por força da entrada em vigor do já mencionado acordo de comércio e cooperação econômica entre Brasil e Estados Unidos, as consultas públicas tornaram-se também obrigatórias para os demais órgãos e entidades reguladoras federais desde 9 de junho de 2024.

A análise de impacto regulatório (AIR) é um requisito administrativo que exige dos reguladores a condução de uma série de etapas ou estudos prévios à aprovação de novas regulações. Amplamente disseminada em vários países do mundo, a AIR tornou-se obrigatória para as agências reguladoras brasileiras, a partir de abril de 2021, após aprovação da Lei no 13.848/19 e do Decreto no 10.411/20, que definiram seus conceitos, requisitos e estabeleceram prazos para sua adoção no país. O Decreto também previu avaliação ex post de atos normativos, o que denominou de Avaliação de Resultado Regulatório (ARR).

Embora cada país regulamente essas ferramentas à sua maneira, organizações como a União Europeia, por meio da sua Better Regulation agenda, e a OCDE, por meio da sua Divisão de Política Regulatória, têm contribuído para a difusão dos instrumentos de melhoria regulatória mundo afora. Acordos de comércio e cooperação, como o mencionado entre Brasil e Estados Unidos, também têm contribuído para a difusão do uso desses instrumentos.

FS: Você poderia descrever, em breves linhas, a introdução e desenvolvimento da política de melhoria regulatória no Brasil?

NS: A agenda brasileira de melhoria regulatória começou a ganhar tração na primeira década do século 21, após a OCDE emitir suas primeiras recomendações quanto à adoção de boas práticas regulatórias. A OCDE estimulava os países a examinar o desempenho de suas regulações; aperfeiçoar seus sistemas decisórios em matéria regulatória; ampliar a eficiência e a transparência em processos regulatórios e; a promover maior convergência internacional para evitar impactos regulatórios indesejados sobre o comércio e o investimento internacional. De forma a acompanhar os debates internacionais sobre melhoria regulatória, em meados de 2006, o governo brasileiro apresentou sua primeira proposta de boas práticas, no âmbito do MERCOSUL. O Brasil propôs, aos países-membros, iniciativas para que o arcabouço regulatório produzido no Bloco apresentasse maior previsibilidade, favorecesse a competição, fosse mais racional e incorresse em menores custos à sociedade.

Rapidamente, os debates sobre melhoria regulatória foram internalizados e entraram na agenda governamental brasileira. Por meio do Decreto no 6.062/07, a partir de uma parceria entre o governo brasileiro e o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, foi criado o Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação – PRO-REG. O PRO-REG objetivava fortalecer o sistema regulatório brasileiro, a partir de práticas como análise de impacto regulatório, participação social e coordenação regulatória. No âmbito do PRO-REG, estudos de diagnóstico foram realizados, projetos-piloto foram conduzidos e ações de capacitação foram promovidas para disseminar as melhores práticas em regulação no país. O foco do PRO-REG eram as agências reguladoras federais, utilizadas como lócus de experimentação de novas ferramentas e práticas regulatórias. O PRO-REG contou com o apoio do BID de 2007 a 2013, se manteve ativo até o ano de 2016, por meio de um comitê da Casa Civil da Presidência da República, mas foi sendo gradualmente descontinuado.

Apesar do esvaziamento do PRO-REG, a melhoria regulatória voltou à agenda governamental brasileira no ano de 2017. O Decreto no 9.203/17, que definia a política de governança da administração pública brasileira, trouxe a melhoria regulatória como um dos princípios da governança pública. O texto do Decreto explicitou a importância de que as decisões regulatórias fossem orientadas por evidências, por qualidade regulatória e por participação social. Ainda que não seja possível identificar os efeitos práticos que o referido Decreto tenha proporcionado à melhoria regulatória, ele teve o papel de não deixar o tema órfão após o enfraquecimento do PRO-REG

Em 2019, após longos 15 anos de discussão – desde seu projeto original até a aprovação de sua versão final – foi aprovada a Lei Geral das Agências (LGA), uma espécie de reforma regulatória brasileira, focada no desempenho regulatório no país. A lei atribuiu às agências reguladoras diversas obrigações e procedimentos que vão desde o planejamento, a gestão e a prestação de contas, passando pelo processo decisório e pelas boas práticas regulatórias. A LGA significou um marco importante na trajetória da melhoria regulatória do país. Ainda que algumas práticas, como a elaboração da AIR, a publicação de agendas regulatórias e o uso de mecanismos participativos já fossem parte da cultura das agências reguladoras, a LGA permitiu a institucionalização, a uniformização e a expansão de práticas e procedimentos por melhoria na qualidade da regulação.

O escopo da LGA foi  direcionado às agências reguladoras federais. No entanto, como dito anteriormente, a atividade regulatória no Brasil não está restrita às 11 agências. Para que a melhoria regulatória alcançasse outras instituições regulatórias em diferentes níveis da federação, o governo aprovou outros normativos que disciplinam a atuação regulatória. A Lei no 13.874/19 (Lei da Liberdade Econômica) passou a exigir a AIR de todos os órgãos da administração pública federal. Além disso, no âmbito do protocolo de comércio entre Brasil e Estados Unidos, o uso de participação social, agenda regulatória, AIR e Avaliação do Resultado Regulatório – ARR passou a ser um compromisso internacional do governo brasileiro  (ver Decreto no. 11092/22 e Decreto no. 11243/22).

No atual governo Lula, o Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação foi revigorado (Decreto no 11.738/22). O Programa foi batizado como PRO-REG II e previu objetivos e diretrizes semelhantes à sua versão original. No entanto, considerando os avanços alcançados e as mudanças no ambiente regulatório brasileiro, o PRO-REG II está acompanhado por outro documento: A Estratégia Nacional de Melhoria Regulatória. Também conhecida como “Regula Melhor”, a estratégia tem a finalidade de promover caminhos para a melhoria regulatória no Brasil, a partir de diretrizes como: governo aberto; uso de evidências; linguagem simples; accountability; inovação, entre outros temas. O lançamento do “Regula Melhor” é recente. As expectativas quanto à sua capacidade de transformar o ambiente regulatório brasileiro são enormes. A SCPR/MDIC não tem medido esforços para executar as atividades previstas na estratégia.

FS: Você desenvolve, há sete anos, pesquisas empíricas sobre instrumentos de melhoria regulatória. Na sua visão, qual a importância dos trabalhos acadêmicos para avançar a política de melhoria regulatória no país?

NS: A contribuição da academia para o avanço não só da política de melhoria regulatória, mas da regulação em geral, é inequívoca. Para que possamos propor melhorias nas instituições existentes, necessitamos de trabalhos empíricos sérios, que tracem diagnósticos precisos sobre os principais gargalos/falhas das instituições e políticas regulatórias. Felizmente, há hoje no Brasil diversas instituições e centros de pesquisa que desenvolvem trabalhos muito sérios na área de regulação, sendo a Fundação Getúlio Vargas, onde trabalho, uma dessas instituições.

O Regulação em Números, que coordeno há sete anos na FGV Direito Rio, tem produzido pesquisas que ampliam a compreensão sobre o uso das ferramentas de melhoria regulatória pelos reguladores federais. Minhas pesquisas sobre participação social em processos regulatórios têm confirmado que há um grau de informalidade excessivo na participação social que ocorre no início dos processos regulatórios, sem regras claras para convite dos atores que participarão das mesas de negociação. Já nas consultas e audiências públicas realizadas em estágios mais avançados dos processos regulatórios, há baixo engajamento das partes afetadas, que ou não participam desses fóruns deliberativos, ou oferecem sugestões que por conta da baixa qualidade técnica são contundentemente ignoradas pelas agências. Estudo recente que equipe do Regulação em Números desenvolveu sobre os 3 primeiros anos de regulamentação da AIR no Brasil revelou baixa qualidade de parte das AIRs produzidas, com textos curtos, com poucas alternativas regulatórias, sem metodologias robustas e que não foram submetidas a mecanismos e participação social. Uma outra pesquisa também desenvolvida por equipe do Regulação em Números sobre agendas regulatórias tem revelado que a prática de produção de agendas regulatórias por agências reguladoras ainda não atingiu, em níveis satisfatórios, a almejada previsibilidade normativa. Na prática, agências editam com muita frequência normas que não estão previstas em suas agendas regulatórias, enfraquecendo, assim, seu potencial para garantir previsibilidade regulatória. Esses são apenas alguns exemplos de pesquisas que muito tem a revelar sobre a realidade da atividade regulatória do país e muito tem a propor para o aperfeiçoamento das instituições regulatórias.

FS: Diante de tudo o que conversamos, qual sua percepção sobre o futuro da regulação e das agências reguladoras no Brasil?

NS: O futuro é incerto, mas não acredito que haverá retrocesso do Estado Regulador no Brasil. A política de melhoria regulatória, em franca expansão, atinge toda a administração pública federal, e não apenas as agências reguladoras. Os alicerces da política de melhoria regulatória já estão pavimentados e um flanco de novas oportunidades se abrem.

Os recentes conflitos percebidos entre atores políticos e agências reguladoras não são inéditos. Seus efeitos devem aquecer debates e discussões em espaços públicos, casas legislativas e academia. Mudanças nas políticas regulatórias não devem ser realizadas de forma imediata ou precipitada. Os debates devem jogar luz sobre as oportunidades de aperfeiçoamento e qualificar decisões quanto à adequação do funcionamento do ambiente regulatório brasileiro. Nesse sentido, a sociedade tem o papel de acompanhar de perto esse debate e exercer influências para que a arena de debates quanto ao melhor desenho regulatório para o país leve sempre em consideração o interesse público e a coletividade.

Natasha Salinas- Doutora e mestra em direito pela Universidade de São Paulo (USP). Master of Laws (LL.M) pela Yale Law School. Professora da graduação em direito e membra do corpo docente permanente do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Direito da Regulação da FGV Direito Rio. Foi Professora Adjunta da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) entre 2013 e 2017. Atualmente atua como coordenadora científica do projeto Regulação em Números, da FGV Direito Rio, onde desenvolve pesquisas sobre uso de ferramentas de melhoria regulatória por agências reguladoras e controle legislativo do poder executivo e produção normativa do poder executivo. Escreve artigos no Jota: https://www.jota.info/autor/natasha-schmitt-caccia-salinas e no Conjur, na coluna Fábrica de Leis: https://www.conjur.com.br/author/natasha-schmitt-caccia-salinas-2/

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Flávio Saab- Graduado em Economia, Mestre e Doutor em Administração, sempre pela Universidade de Brasília (UnB), e atua como pesquisador de Pós-Doutorado na Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio). Tem trabalhos científicos publicados em periódicos nacionais e internacionais e experiência como professor de graduação e pós-graduação na Universidade de Brasília (UnB) e na Escola Nacional de Administração Pública (Enap). Flavio também é servidor público federal, integrante da carreira de Especialista em Regulação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Desde 2023, está cedido ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para atuar com análises de atos de concentração de empresas.

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