EGP Entrevista: Carlos Ari Sundfeld

Amigos e amigas do Ementário de Gestão Pública, a entrevista especial de hoje reúne dois dos maiores docentes em Direito Público do Brasil na atualidade. O professor Carlos Ari Sundfeld (FGV SP) foi entrevistado pela professora Vera Monteiro (FGV SP) sobre o tema Reforma da Estrutura da Organização Administrativa Brasileira. A organização dos trabalhos foi feita pelo estimado colega Eduardo Paracêncio. Aproveitem! 

Vera Monteiro – No dia 14 de maio de 2024, a AGU e o MGI formaram uma Comissão de Especialistas para estudar proposta de revisão do Decreto-Lei 200, de 1967. O que aconteceu com o trabalho entregue em 2009 pela comissão de professores de direito administrativo da qual você fez parte?

Carlos Ari Sundfeld – A comissão instituída pelo Ministério do Planejamento em 2007 apresentou, em 2009, um anteprojeto de lei coletivo com proposta de nova estrutura nacional de organização da administração pública e das relações com entes de colaboração.

Se tivesse sido aprovada, seria uma norma nacional com a pretensão de superar as insuficiências, contradições e imprecisões do DL 200, de 1967. O diagnóstico era que havia enorme fragmentação de iniciativas em matéria de organização e perda de visão do conjunto das alternativas no modo de funcionamento do aparato do Estado, gerando confusão conceitual, obstáculos à gestão pública e desencontros entre órgãos de controle e gestores sobre aspectos da organização e funcionamento das entidades administrativas.

Era uma proposta de reforma administrativa. Não entrava nos aspectos específicos de organização da administração pública federal, que estão na lei que trata dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios.

O anteprojeto coletivo estabelecia “normas gerais sobre a administração pública direta e indireta, as entidades paraestatais e as de colaboração”. Previa os tipos possíveis de entes da administração pública, definindo sua natureza jurídica, levando em conta os objetivos institucionais a que se destinavam, estabelecendo as normas básicas a serem observadas em sua atuação. Disciplinava, ainda, as entidades de colaboração (parcerias com o terceiro setor) e as entidades paraestatais (corporações profissionais e serviços sociais autônomos que recebem contribuições compulsórias dos empregadores com fundamento no art. 240 da CF e prestam serviço social e de formação profissional, vinculadas ao sistema sindical).

O trabalho não chegou a ser enviado ao Congresso Nacional.

VM – Passados 15 anos do trabalho elaborado, como seria uma versão atualizada do anteprojeto coletivo de 2009? O diagnóstico permanece o mesmo?

CAS – De 2009 para cá houve a aprovação de leis importantes sobre a organização do Estado e o modo de prestação de serviços. Na ordem cronológica, cito o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (lei 13.019, de 2014), a Lei das Estatais (lei 13.303, 2016), a reforma da Lei de Introdução às Normas do Direito Público Brasileiro (lei 13.655, de 2018), a Lei das Agências Reguladoras (lei 13.848, de 2019), a Lei do Contrato de Desempenho, que foi parcialmente inspirada no anteprojeto coletivo (lei 13.934, de 2019), a Lei de Licitações e Contratos Administrativos (lei 14.133, de 2021) e Lei da Decisão Coordenada (lei 14.210, de 2021). Logo, certos objetivos buscados nos preceitos do anteprojeto coletivo foram, de forma suficiente ou não, tratados por legislação superveniente.

Em 2021, a pedido do Instituto República, elaborei o “Anteprojeto da Lei Nacional para Estabilidade Jurídica e Reforma Fundacional da Gestão Pública Brasileira”. Seria uma lei geral. O diagnóstico era de que o Brasil continuava a precisar de uma reforma jurídica significativa na gestão pública.

Primeiro, a legislação administrativa de caráter nacional, que pauta a atuação das diversas esferas federativas, continua ampla e dispersa, e, por isso, experimenta aplicação com grande aleatoriedade. A fragmentação das decisões administrativas e de controle permanece um desafio. Não há instância técnica para cuidar, de modo específico, permanente e eficiente, da coerência e da estabilidade jurídica do estado administrativo em seus diversos níveis e funções. Isso afeta a eficiência da ação finalística do estado, com gestores onerados ou à espera do fim das disputas jurídicas, que surgem a toda hora dentro da própria administração, no controle externo e no Judiciário. É preciso diminuir esse caos de interpretações nos temas-chave de gestão pública. Sem isso, entidades estatais de direito público (autarquias) e entidades estatais de direito privado (empresas estatais e fundações estatais) tem equivocadamente se aproximado nesse emaranhado de decisões descoordenadas. Para enfrentar esse desafio da fragmentação e descoordenação, propus criar mecanismos que propiciem uma estabilidade jurídica no modo de interpretação e aplicação de normas nacionais de direito público, em temas-chave de gestão pública.

Depois, porque a existência formal de uma variedade de figuras organizacionais não tem sido suficiente para dar à administração modelos variados de estruturação, que possam ser usados para as distintas finalidades assumidas dentro da complexidade do Estado contemporâneo. Os variados regimes jurídicos (autarquias, empresas estatais e fundações estatais) tem equivocadamente se aproximado. E fundações estatais de direito privado deixaram de ser usadas na administração federal, especialmente porque passaram a ser vistas como autarquias (com o mesmo regime funcional e orçamentário-financeiro). Por isso insisti na proposta de, por meio de uma lei geral, aumentar a autonomia das fundações estatais mediante a instituição de um regime jurídico adequado, de direito privado, para que essas entidades sejam mais uma estrutura organizacional à disposição da administração para alcance de fins públicos.

VM – O que seria essa ideia contida em sua proposta de lei geral, de uma nova autoridade jurídica, técnica e nacional, para a gestão pública brasileira?

CAS – Minha proposta é de criar um Conselho Nacional da Gestão Pública que, em matérias previamente determinadas, unifique e uniformize as soluções técnico-jurídicas gerais necessárias para uma boa gestão pública. Seria um órgão apenas normativo, sem qualquer interferência direta em decisões concretas.

Esta autoridade conduziria todas as administrações brasileiras e controladores externos (com exceção do Judiciário) a seguirem as mesmas normas técnicas gerais e interpretações, resolvendo uma falha importante do sistema federativo brasileiro. A proposta visa criar uma instância normativa administrativa nacional, que garantiria, exclusivamente por meio da edição de normas gerais administrativas, a uniformidade na aplicação das leis administrativas nos temas-chave escolhidos pela lei, sem comprometer a autonomia atual, dos entes subnacionais ou dos órgãos e entidades da própria administração federal, para a gestão do dia a dia, ou para tratar, inclusive por regulamentos, das matérias que lhes forem específicas.

A criação desse Conselho Nacional da Gestão Pública envolveria a utilização de dois instrumentos principais: a súmula administrativa, que harmonizaria a interpretação de normas constitucionais ou legais, e o regulamento técnico-administrativo, utilizado quando houvesse autorização legislativa para normatizar temas técnicos sobre gestão pública de incidência nacional​.

Os temas-chave de gestão pública sobre os quais o Conselho poderá deliberar já estariam previstos de modo taxativo na lei, de natureza complementar. São eles, em minha proposta: prevenção administrativa da corrupção; transparência e publicidade administrativa; desburocratização administrativa; finanças públicas e política fiscal; licitação e outros processos de contratação; concurso público e outros procedimentos de admissão ou contratação de servidores, empregados e agentes administrativos. Além desses, o Conselho também poderia normatizar a respeito do conteúdo da própria lei geral que o tiver criado.

A taxatividade da lista de matérias em que o Conselho atuaria é importante. Ela impede que, seja por ação própria, seja por futuras delegações legislativas, o órgão venha a expandir seu campo de atuação, interferindo no atual equilíbrio federativo ou nas funções instituições dos Poderes e órgãos constitucionais autônomos do país. A escolha desses temas-chave não foi ao acaso. Estão neles os principais entraves em termos de gestão pública que precisam ser enfrentados com urgência.

VM – Agora vamos falar sobre a fundação estatal de direito privado. Qual seria o regime jurídico próprio e adequado dela?

CAS – O regime adequado à fundação estatal seria um regime jurídico de direito privado, conforme aceito em diversas ocasiões pelo STF. Esse regime buscaria equilibrar a natureza jurídica de direito privado com as precauções necessárias para atender aos princípios constitucionais da administração pública, garantindo controle público sobre suas atividades. A ideia é conferir um regime compatível com as atividades especiais das fundações estatais, que demandam agilidade e flexibilidade, muitas vezes incompatíveis com as limitações de um regime de direito público. Em relação a esse tema, minha proposta é um desenvolvimento de uma parte do anteprojeto coletivo de 2009. Essencialmente, essas fundações atuariam nos setores de saúde, educação, cultura, ciência e tecnologia, onde a adaptabilidade e respostas rápidas são cruciais para o bom atendimento das demandas

O objetivo central da minha proposta, quanto às fundações estatais, é o de, por meio de uma clara definição de seu regime jurídico, em seus múltiplos aspectos, reverter a equivocada tendência – verificada sobretudo no âmbito federal – de autarquização de todas as fundações, mesmo daquelas cujas atividades não o justificassem. Se, por um lado, fundações de direito público devem se submeter ao regime autárquico, a fundação estatal de direito privado é um modelo jurídico não só compatível com a Constituição como indispensável para a atuação eficiente do Estado na área social. Sua utilização, hoje bastante dificultada por conta de dúvidas jurídicas e extensões legais indevidas, se tornará plenamente viável se houver clareza jurídica quanto a seu regime – e, claro, se ela estiver sujeita ao regime mínimo das entidades estatais imposto pela Constituição, como também ocorre com as empresas estatais. A recuperação da figura da fundação estatal de direito privado tem de ser acompanhada da construção de um regime jurídico flexível de gestão, que lhe permita cumprir de modo eficiente suas missões, sem perda dos controles públicos.

VM – Sua proposta regula e opõe a fundação estatal independente à fundação estatal mantida pelo poder público. Qual a razão dessa classificação?

CAS – A dicotomia entre fundação estatal independente e fundação estatal mantida pelo poder público visa reconhecer regimes jurídicos diferenciados para atender às diversas necessidades de gestão e financiamento dessas entidades.

A fundação estatal independente possui autonomia financeira, respondendo integralmente por suas obrigações financeiras e podendo receber dotações públicas apenas para constituição, ampliação e atualização de seu patrimônio. Ela é regida pelas normas da legislação civil e processual civil, adaptadas conforme necessário. Além disso, pode ser instituída ou orientada em conjunto com particulares, que podem participar de seus órgãos estatutários. Esta fundação tem autonomia para aprovar seu próprio orçamento e é regida por normas próprias das entidades privadas na execução desse orçamento. Também pode ser contratada sem licitação para prestação de serviços específicos, desde que por preços e condições justas.

Por outro lado, a fundação estatal mantida pelo poder público, em virtude de sua direta vinculação ao orçamento público, é regida por legislação específica e regulamento técnico-administrativo, sem aplicação das normas civis comuns. Pode ser instituída por decreto ou escritura pública com autorização de lei específica. Tem seu orçamento aprovado na lei orçamentária anual e deve observar as normas constitucionais de gestão financeira e patrimonial. Depende de autorização da administração direta para a validade de seus atos financeiros e está sujeita à intervenção administrativa em caso de descumprimento sistemático das normas aplicáveis.

A dicotomia visa atender diferentes necessidades, permitindo que fundos e recursos das fundações estatais independentes sejam geridos com maior flexibilidade, essencial para áreas que exigem respostas rápidas e adaptabilidade. Enquanto isso, as fundações mantidas pelo poder público estão sujeitas a um controle mais rigoroso e burocrático, adequado para entidades que dependem diretamente de recursos públicos. Esta diferenciação permite que fundações independentes operem com a eficiência do setor privado, enquanto fundações mantidas pelo poder público mantêm a supervisão e controle adequados às suas funções públicas.

VM – O modelo de fundação estatal independente conflita com o modelo de organização social?

CAS – Não, em nada.  Entes de colaboração em geral são criados no regime civil por particulares, estabelecem com o estado laços voluntários, especiais, com prazos determinados, e assim assumem fins públicos. Não há como fechar os olhos a isto: como autênticos parceiros, eles têm sido os maiores responsáveis pelo experimentalismo na gestão dos serviços públicos sociais. Uma tarefa muito desafiadora. Basta olhar o sufoco que foi a adaptação, em 2020, dos serviços hospitalares durante a pandemia. Sem os entes de colaboração, e sua autonomia de gestão, as perdas humanas teriam sido ainda mais graves.

Como são estruturados no âmbito privado, os entes de colaboração têm espaço de gestão bem superior ao de qualquer entidade estatal. As mais conhecidas hoje em dia, por sua atuação na saúde pública e na cultura, são, de um lado, as fundações de apoio, cujo regime geral foi tratado no âmbito federal em 1994 pela lei 8.958 (alterada depois várias vezes), e, de outro lado, as organizações sociais (OS), com regime para a esfera federal desenhado por uma lei que acaba de completar 25 anos: a 9.637.

O fato é que vínculos do estado com entes de colaboração têm gerado resultados positivos. E os modelos adotados vêm se diversificando e evoluindo com o aprendizado. Hoje, ninguém na máquina pública cogita a sério desistir deles, para interiorizar toda a gestão dos serviços sociais. Mas, em vários casos, há déficit de segurança jurídica justamente em parcerias cujas características especiais, diversas das OS e fundações de apoio, têm sido valiosas.  O Estado de São Paulo, recentemente, com a edição da lei estadual 17.893, de 2 de abril de 2024, disciplinou de modo adequado suas parcerias com as fundações civis de saúde criadas e geridas não pelo Estado, mas sim pelas comunidades científicas de suas universidades públicas. São entidades não estatais, que hoje garantem a qualidade dos hospitais universitários, que agora contam com um regime legal expresso e seguro.

Entidades assim não se confundem com as fundações estatais independentes, isto é, aquelas que, apesar de sua independência financeira, faça sentido manter vinculadas permanentemente à máquina pública e submeter à supervisão das autoridades da administração direta e à política por elas implementadas.  De qualquer modo, em minha proposta de lei geral, de que falávamos antes, a fundação estatal independente pode até mesmo se qualificar como organização social, desde que com entidades político-administrativas diversas daquela a cuja administração indireta se vincule. Nesse caso, terá que cumprir os requisitos da legislação de OS.

VM – Você que participou de perto da elaboração dessa lei do Estado de São Paulo, poderia relatar em mais detalhe no que consistiu a inovação e a importância da nova lei?

CAS – O tema da nova lei do Estado de São Paulo é a reforma focada da gestão administrativa, neste caso no campo da saúde pública e das universidades públicas. A lei paulista 17.893, de 2 de abril de 2024, legitima e consolida os vínculos da administração estadual com as fundações civis de saúde instituídas pelas comunidades científicas das universidades estaduais.

São modelos de gestão que, embora não formais, por não contarem com autorização expressa em lei, entregaram resultados consistentes ao longo do tempo e se legitimaram. Isso inclui as fundações civis de saúde que desempenham papéis cruciais na alta complexidade e urgência do atendimento médico. Ao legitimar esses vínculos, a lei permite que essas fundações operem com maior eficiência e transparência, contribuindo para uma gestão administrativa mais moderna e eficaz.

Tradicionalmente incluídas em uma confusa categoria jurídica geral – a das fundações de apoio – elas nasceram por iniciativa das próprias comunidades científicas das várias universidades públicas, para atuar na viabilização do respectivo hospital universitário, de forma cooperativa não só com o Estado, mas com o setor privado, outros entes públicos, agências de fomento, etc.

A lei paulista de 2024 apoia inovações na gestão pública ao permitir que essas entidades não integrantes da máquina pública, mas com missões relevantes, possam continuar a contribuir significativamente com a saúde pública e, em posteriores evoluções, com outras áreas de serviço público. Ela serve como um modelo que pode ser seguido por outros entes da federação, incentivando a consolidação com qualidade de experiências juridicamente informais que já demonstraram resultados concretos.

A aprovação da lei paulista foi possível graças à convergência entre acadêmicos, gestores, controladores públicos e forças políticas opostas, demonstrando um raro consenso em torno da necessidade de uma nova reforma focada da gestão administrativa.

A nova lei de São Paulo é um passo significativo para modernizar e melhorar a gestão pública do Estado, tornando-a mais adaptável, eficiente e alinhada com as necessidades contemporâneas do serviço público.

VM – É possível dizer que este caso de São Paulo é um exemplo de consolidação setorial que se utiliza da fundação estatal de direito privado?

CAS – Não exatamente. As fundações civis de saúde não estatais são uma espécie, que já funcionava, evoluiu e faz sentido manter, do gênero entidades estatais de colaboração com o poder público.  Já o modelo de fundações estatais de direito privado é outra coisa: trata-se de entes propriamente estatais, integrantes do poder público, com as vantagens e desvantagens daí decorrentes.

As fundações civis de saúde, entes não estatais que o Estado de São Paulo resolveu consolidar, embora possam prestar serviços, não são, em relação aos hospitais que motivaram o surgimento de cada uma delas, prestadoras comuns. São parceiras muito singulares: tanto por seu propósito (interagir com aquele estabelecimento universitário em especial), como pelo sujeito envolvido (a comunidade científica de saúde daquela universidade) e pela governança especial que este sujeito atrai (por conta dos padrões, exigências e limitações da universidade em relação às atuações de sua comunidade científica, na forma do art. 207 da Constituição).

É natural que, na área da saúde pública, as fundações civis científicas dedicadas, da própria comunidade da universidade pública, sejam escolhidas para receber incentivos estatais fortes, que levem ao desenvolvimento delas. Interessa ao estado a existência e a autonomia de entidades qualificadas da sociedade civil e, por isso, fazem sentido programas de parceria dirigidos a isso. Se o estado abre espaço para uma atuação cooperada dentro do hospital universitário, envolvendo uma fundação civil científica dedicada, o que ele está fazendo é investir em um projeto de desenvolvimento institucional alternativo. Ele está fomentando uma entidade civil científica. E não se desonerando simplesmente, ou fugindo de amarras legais.

É, portanto, compreensível e desejável que, no campo da saúde pública, o estado mantenha, com as fundações civis científicas dedicadas, relações de fidúcia, que deem a elas o espaço necessário para lidar com as demandas do dia a dia, naquilo em que sua atuação cooperada puder gerar avanços.

Não é correto pretender dessas fundações a reprodução dos procedimentos estatais. Afinal, o objetivo desse tipo de parceria não é a simples terceirização de funções materiais, tampouco a criação de filhotes do estado. É, isto sim, o desenvolvimento de entidades verdadeiramente da sociedade civil, com cultura e vida próprias, cooperando com o estado em relação de autonomia, não de heteronomia.

Como essas fundações precisam atuar no SUS, que é estruturado por lei, a consolidação definitiva de suas atuais parcerias com o estado precisa de regras legais próprias, que estabilizem seu encaixe na organização setorial. As leis têm de identificar com clareza quais são essas fundações civis de saúde, autorizando de modo expresso que as administrações públicas de saúde estabeleçam especificamente com elas relações jurídicas de caráter fiducial.

Essas relações, e os recursos públicos nelas envolvidos, serão naturalmente fiscalizados pelos controles públicos. Mas, não se tratando de entidades da administração pública, e sim da sociedade civil, elas não estão sujeitas a prestação global de contas a controles públicos (salvo, claro, as curadorias de fundações, do Ministério Público). Controles públicos de contas têm de ficar focados só nas obrigações com recursos públicos.

Seria uma sabotagem constitucional a tentativa de equiparação, para fins de controle, de fundações civis científicas da saúde com fundações públicas ou outros entes da máquina do estado. As normas da Constituição que tratam da Ciência, da Tecnologia e da Inovação foram bem explícitas quando, ao imporem a forte cooperação estatal com entes da sociedade civil, destacaram seu caráter privado e sua autonomia (arts. 218 a 219-B, com a redação da EC 95, de 2015). Querer, no âmbito da cooperação científica em saúde, tratar entes privados como se fossem entes públicos seria uma forma de, na prática, estatizar tudo e barrar a convivência de entes “tanto públicos quanto privados”, como exige a Constituição.

Além disso, não há fundamento constitucional nenhum para exigir que, em relação ao hospital universitário a que se liga, a fundação científica só possa atuar no formato de organização social. Contratos de gestão com as OS não se destinam a desenvolver ambientes de inovação, ciência e formação profissional nos estabelecimentos de assistência à saúde. É preciso então que, no âmbito da saúde pública, as leis, escoradas nos arts. 218 a 219-B da Constituição, reconheçam o caráter peculiar dos instrumentos contratuais entre o estado e as fundações científicas dedicadas ao respectivo hospital universitário.

Elas já têm assumido a responsabilidade pela assistência à saúde nesses hospitais. E isso tem sido valioso para a assistência, para a formação profissional qualificada, para a inovação científica e para o avanço nas práticas de gestão. A lei tinha de reconhecer a legitimidade disso, para autorizar com clareza que as fundações civis científicas da saúde pública sejam ressarcidas diretamente pelo SUS. O ressarcimento tem de ser ajustado por uma forma que seja compatível com a relação de fidúcia, não necessariamente no formato de pagamentos por procedimentos individuais.

Os instrumentos contratuais têm de ter objeto definido, claro, mas a gestão dos recursos destinados às fundações científicas dedicadas não tem de ficar engessada em planilhas minuciosas encaradas como inflexíveis. A lei reconheceu que a gestão financeira desses recursos deve ser guiada pelo princípio de equilíbrio dinâmico, em que se autorizam realocações e trocas por iniciativa das fundações, guiadas pelos objetivos gerais da parceria. Do contrário, para que serviria uma parceria com uma entidade científica autônoma?

Mas, claro, a lei de consolidação tem de assegurar, como fez a recente lei paulista, que as parcerias especiais só envolvam fundações civis realmente autônomas. A direção destas não pode simplesmente se confundir com a direção dos hospitais universitários. A governança privada interna das fundações civis tem de assegurar transparência e qualidade de gestão, além de impedir contratações que beneficiem indevidamente as autoridades públicas ou pessoas a elas relacionadas.

As normas de uma lei com essa função têm de ser construídas a partir da realidade, não de modelos puramente abstratos ou incompatíveis com o regime constitucional da ciência e inovação, que exige a cooperação de entes públicos com entes privados.

Com a consolidação legal feita pela lei paulista em favor das fundações civis de saúde, os controles públicos se sentirão autorizados, em relação aos recursos públicos envolvidos em contratações com as fundações civis de saúde das comunidades científicas das universidades públicas e seus hospitais universitários, a deixar de lado os controles tradicionais de conformidade burocrática, para mirar a avaliação dos resultados na lógica das auditorias operacionais.

Os controladores agora podem olhar, com visão de longo prazo, se, com as parcerias com as fundações civis científicas, o estado faz com que os serviços ocorram e melhoram, e, em benefício do país, brotem as inovações e avancem a formação profissional e o desenvolvimento das ciências da saúde pública. É esse o programa que a Constituição nos impôs.

Mas, claro, há casos – e há certos entes federativos – em que a opção política preferida é o desenvolvimento de capacidades estatais diretas para a prestação de serviços. É justo que exista um modelo jurídico adequado, e é para isso, então, que a figura da fundação estatal de direito privado ainda precisa ser recuperada e consolidada. É este justamente o objetivo da minha proposta de lei geral, a que nos referimos anteriormente nesta conversa.

VM – E o que é a ideia da “gestão pública experimental”, novidade que aparece em sua proposta de lei geral?

CAS – A gestão pública experimental mencionada na proposta de lei geral se refere à possibilidade de, nas fundações estatais de direito privado, realizarem-se experimentos controlados de desburocratização, na forma disciplinada por um regulamento técnico-administrativo nacional editado pelo Conselho Nacional da Gestão Pública. Esses experimentos seriam submetidos a regimes jurídicos alternativos com o objetivo de desenvolver e testar novas soluções em gestão pública, observando os princípios constitucionais da Administração Pública.

As áreas abordadas incluem: (i) execução de atividades por formas mais modernas e eficientes, inclusive por meio de associações com terceiros; (ii) procedimentos e modelos de contratação e outros ajustes com empresas ou entidades estatais e do setor privado, visando resolver problemas existentes, melhorar serviços e atividades, diminuir custos e aumentar a eficiência e segurança na celebração de contratos, execução dos objetos contratados e prestação de contas; e (iii) contratação direta por inexigibilidade de licitação em situações onde, devido às características do mercado ou do objeto do futuro contrato, a competição adequada por processos de licitação não é viável.

Os experimentos controlados poderiam temporariamente adaptar as restrições e exigências burocráticas previstas em lei que possam impedir, inviabilizar, dificultar, onerar ou atrasar o experimento. Contudo, esses regimes jurídicos alternativos deveriam respeitar integralmente, como é natural, as normas constitucionais e de direito civil, comercial, do trabalho, penal, finanças públicas e tributário, bem como as normas sobre garantias e direitos individuais, coletivos e difusos​.

Como se percebe, é um incentivo para as fundações estatais de direito privado variarem, em busca de soluções mais adequadas e modernas de gestão. Isso fortalece a administração pública, evitando que tenha de recorrer artificialmente a entes não estatais de colaboração, isto é, que o faça não para de fato colaborar com o mundo não estatal, mas sim com o objetivo exclusivo de fugir de amarras públicas que não façam mais sentido. Portanto, minha proposta de lei geral não tem orientação desestatizante, antes ao contrário. Ela procura viabilizar fórmulas adequadas de gestão pública para permitir que, quando se entender necessário – o que é um juízo político – serviços sejam mantidos na órbita estatal. 

Para dar um exemplo: é natural que as universidades federais mais tradicionais continuem a integrar a máquina pública. Mas elas precisam ter acesso a uma gestão mais moderna. Sua transformação em fundações estatais de direito privado pode propiciar isso, desde que uma lei nacional estabilize seu regime jurídico, na forma de minha proposta.

De outro lado, é natural que a evolução e a necessidade de maior conexão com a sociedade civil, ou mesmo com o setor empresarial privado, leve alguns serviços específicos nascidos dentro dessas universidades a migrar para uma entidade de outro tipo, situada fora da máquina pública, mas que mantenha vínculos fortes com esta. Para casos assim faz sentido que o poder público dê incentivos à utilização ou criação de uma entidade não estatal de qualidade, que atuará como colaboradora. Minha proposta, inclusive, regulamenta para esse fim a desestatização de órgãos ou entidades estatais não lucrativas, o que é uma adaptação da conhecida privatização de empresas estatais.

VM – Por fim, na sua visão, você também acha que a Lei do Contrato de Desempenho (lei 13.934, de 2019) não pegou?

CAS – Concordo. A ideia era muito promissora, foi inspirada em nosso anteprojeto coletivo de 2009, mas quando virou lei estava muito mitigada e o impacto que se buscava acabou não acontecendo. Para lembrar, o contrato de desempenho é “o acordo celebrado entre o órgão ou entidade supervisora e o órgão ou entidade supervisionada, por meio de seus administradores, para o estabelecimento de metas de desempenho do supervisionado, com os respectivos prazos de execução e indicadores de qualidade, tendo como contrapartida a concessão de flexibilidades ou autonomias especiais” (art. 2º).

Para que o controle pelo desempenho se viabilize, a administração direta precisará se sentir de fato obrigada a cumprir o acordado. Sem uma solução que realmente a obrigue, nenhuma solução consensual sairá do papel. Além disso, a versão final da lei não incluiu a possibilidade de flexibilizações efetivas do regime legal de gestão, de modo que os órgãos e entidades também não têm demonstrado interesse nesse contrato; não há incentivo real para sua celebração. 

Carlos Ari Sundfeld – Doutor (1991), Mestre (1987) e Bacharel (1982) em Direito pela PUC-SP, da qual foi professor no Doutorado, Mestrado e Graduação (1983-2013). Na FGV Direito SP, de que foi um dos fundadores, é Professor Titular, atuando no Doutorado e Mestrado Acadêmico, no Mestrado Profissional e no Grupo Público. É o presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público (sbdp), criada em 1993, que mantém a Escola de Formação Pública, em parceria com a FGV Direito SP, e publica a coleção de livros sbdp-Malheiros. Entre seus livros: Direito Administrativo: O Novo Olhar da LINDB (Fórum, 2022)  e Direito Administrativo para Céticos (Malheiros, 2014, 2ª edição), além do livro coletivo Curso de Direito Administrativo em Ação (Malheiros-Jvspodium, 2024). Participou da concepção de inovações legislativas como a reforma da LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro em 2018, a licitação por pregão, a Lei Geral de Telecomunicações, o modelo brasileiro de agência reguladora independente (ANATEL), as Leis Federal e Mineira de Parcerias Público-Privadas, a Lei Paulista de Processo Administrativo, e outras. Foi Procurador do Estado de São Paulo (1984-2003). É sócio-fundador da Sundfeld Advogados – Consultores em Direito Público e Regulação. Escreve colunas para o Jota https://www.jota.info/autor/carlos-ar?non-beta=1 Contato: [email protected]

Vera Monteiro – Bacharel em Direito pela Faculdade Paulista de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP (1997), laureada pelo Prêmio Faculdade Paulista de Direito, como melhor aluna do curso, mestrado pela mesma Faculdade (2003) e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (2009), ambos na sub-área de concentração direito administrativo. Professora da FGV Direito SP e da Sociedade Brasileira de Direito Público. Lemann Visiting Fellow na Blavatnik School of Government (Oxford). Tem experiência na área de Direito Administrativo, atuando principalmente nos seguintes temas: licitações, contratos administrativos, concessões e parcerias público-privadas, regulação e serviços públicos. Entre suas publicações: Concessão (Malheiros, 2010) e o livro coletivo Curso de Direito Administrativo em Ação (Malheiros-Jvspodium, 2024). É sócia do Sundfeld Advogados. Nos últimos anos têm se dedicado ao tema da reforma administrativa. Integra o Movimento Pessoas à Frente e o Conselho do Instituto República.org. É maratonista e escreve colunas para o Jota: https://www.jota.info/autor/vera-monteiro?non-beta=1 Contato: [email protected]