Caríssimos(as)! Temos observado um intenso debate sobre os concursos públicos no Brasil. Várias são as propostas para modernizar a forma como a Administração Pública seleciona pessoas e inúmeros são os desafios para implementar mudanças nessa área da gestão pública. Pensando nisso, a professora, gestora governamental e doutora em Psicologia Social do Trabalho, Aleksandra Santos, convidou a especialista em regulação de transportes da Antaq Livia Resende Lara para uma entrevista. O mestrado em Gestão de Políticas Públicas recém-concluído pela Lívia tratou de concursos públicos no Brasil (acesse aqui a dissertação https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/100/100138/tde-28072023-143442/).
Aleksandra Santos : O que motivou a realização de sua pesquisa?
Livia Resende – A minha questão inicial era a forma como os cursos de formação eram conduzidos. A minha experiência e os relatos que recebi sobre esta etapa do processo seletivo para diversas carreiras da administração pública federal seguiam sempre a mesma linha: muitas horas de aulas teóricas e uma prova de múltipla escolha no final. Sempre acreditei que, uma vez superadas as restrições das fases iniciais quanto aos instrumentos de avaliação, seja pela quantidade de candidatos ou por questões legais, ao menos o curso de formação poderia incluir outros meios de avaliar os candidatos de forma mais ampla, como a identificação de habilidades, interesses e competências comportamentais. Eu queria entender a razão de tantos processos adotarem sempre o mesmo formato limitado, com pouquíssimas variações.
AS: Você aponta uma análise de 698 editais de concursos para órgãos públicos federais publicados entre 2001 e 2010, demonstrando que os processos seletivos para cargos públicos são realizados quase que unicamente por meio de aplicação de provas de múltipla escolha. Quais os principais vieses e entraves desse tipo de seleção?
LR: Embora o modelo atual represente um avanço quanto à publicização das vagas e viabilizado processos seletivos que prezem pela impessoalidade, ainda há muito espaço para se avançar quanto à escolha dos candidatos mais aptos ao exercício dos cargos públicos. Quando falamos em processo seletivo baseado exclusiva ou majoritariamente em provas teóricas de múltipla escolha, o que se observa é que o método privilegia os candidatos com alta capacidade de memorização e que dispõem de tempo e recursos financeiros para se dedicarem à preparação para as provas. Considerando que o conhecimento teórico obtido para a prova será obsoleto em poucos anos, a seleção é feita a partir de critérios que guardam pouca relação com a capacidade de entrega futura do candidato. A experiência prévia, por exemplo, que é um dos preditores de desempenho reconhecido, é um aspecto preterido ou mesmo desconsiderado no processo. Da mesma forma, as aptidões e habilidades necessárias à execução das atividades inerentes ao cargo, aspectos éticos e a vocação ao serviço público também não são adequadamente valorados no cenário atual.
AS: Quais evidências empíricas ou achados que corroboram a ideia comumente aceita e amplamente difundida de que há uma crise no modelo dos concursos públicos realizados no Brasil?
LR: As referências adotadas para o trabalho- em particular as pesquisas de Fontainha et al (2014) e Coelho & Menon (2018) – classificam os aspectos deletérios do modelo atual em quatro grupos: a judicialização dos certames, a insuficiência de um ethos de serviço público, as limitações da área de gestão de pessoas no setor público e dinâmica do mercado criado em torno dos concursos. Os dados levantados pela pesquisa evidenciam que a possibilidade de paralisação ou cancelamento do processo em virtude de decisão judicial é latente e permeia as decisões adotadas em diversas fases de planejamento da seleção. O gestor não quer correr o risco de ter o processo cancelado e, por isso, se pauta na experiência da banca. Essa, por sua vez, tem como medida de sucesso as seleções que foram menos contestadas em sua legalidade e imparcialidade e assim fecha-se o ciclo de repetição. Nesse sentido, outro aspecto que corrobora as pesquisas anteriores são as limitações nas formas de seleção, a avaliação dos candidatos circunscrita às provas escritas e a ausência de avaliação dos aspectos éticos. E por fim, embora as agências reguladoras ofereçam salários atrativos em relação aos demais cargos da administração pública federal, os processos analisados não conseguiram evitar a seleção de “concurseiros”, ou seja, candidatos que após a posse no cargo continuaram estudando para outros concursos.
AS: Os resultados da sua pesquisa demonstram que apesar da seleção basear-se quase exclusivamente em provas escritas, os resultados dos concursos foram satisfatórios para as agências estudadas. A que você atribui esses achados?
LR: Os resultados da pesquisa de certa forma se contrapõem ao entendimento predominante de que os processos seletivos públicos são pouco eficientes, o que, no meu entendimento, se deve principalmente a duas medidas adotadas pelas equipes designadas na condução dos processos. A primeira delas é que houve um levantamento prévio com as áreas para identificar em quais processos internos os novos servidores atuariam. De posse dessas informações e em conjunto com as respectivas bancas, foram então definidas as formações acadêmicas e conhecimentos específicos necessários ao desempenho das atividades. Com isso, as agências foram capazes de atrair candidatos que se identificassem com atividades de regulação e/ou com o setor econômico de atuação da entidade. O segundo ponto de destaque foi a aplicação de prova discursiva para todos os cargos, em todos os processos seletivos estudados. Essa medida ampliou a base de avaliação do candidato a partir de uma habilidade essencial para as atividades cotidianas do futuro servidor, uma vez que a comunicação oficial na administração pública é escrita.
Por outro lado, não podemos ignorar que a percepção dos entrevistados quanto aos resultados também contribui para o resultado satisfatório. Nesse quesito, destaco que o principal indicador de sucesso apontado foi a baixa rotatividade na ocupação das vagas, critério que não guarda relação com a qualidade do trabalho realizado, e nem mesmo a satisfação do servidor. Entendo também que grande parte dos entrevistados transmitem a ideia de que “os limites do método (legais ou não validados anteriormente) estão postos, e neste cenário, o resultado do processo foi bem-sucedido”; ou seja, de modo geral, os entrevistados não questionam o modelo vigente.
AS: Dentre as propostas apresentadas em sua pesquisa está a análise de possibilidades de avaliação de aspectos individuais em concursos públicos sem que se crie um imbróglio jurídico. Quais sugestões são apresentadas para esse desafio?
LR: Exato. Com a pesquisa identificou-se alguns modelos já validados que permitem a seleção dos candidatos a partir de critérios objetivos, capazes de identificar aspectos individuais relevantes enquanto preditores de desempenho futuro e que não foram aplicados nos processos seletivos estudados. Nas provas objetivas, por exemplo, podem ser inseridas questões que avaliem a capacidade de raciocínio do candidato. Os modelos de questões do ENEM e da ANPAD, são exemplos de que é possível elaborar questões de múltipla escolha que avaliem mais do que a teoria ou a literalidade da lei. Nas provas discursivas, a aplicação de questões-problema que o futuro servidor terá que lidar no exercício do cargo podem avaliar tanto aspectos éticos quanto sua capacidade de aplicação do conhecimento ao caso prático.
Já o curso de formação, por se estender no tempo e por não ter tantas amarras jurídicas, permitiria a aplicação de outros métodos que avaliem as habilidades e competências do candidato de modo mais amplo; que simulem o ambiente de trabalho e o coloque em contato com situações que enfrentará enquanto servidor.
AS: Na sua avaliação, como o modelo de Gestão por Competências pode contribuir para o aperfeiçoamento dos concursos públicos no Brasil?
LR: Essa era uma das hipóteses iniciais do trabalho: a aplicação do modelo de gestão por competências aos processos seletivos aprimoraria o modelo atual. Entretanto, o que se constatou com a pesquisa é que o levantamento de competências nas agências, quando tem aplicabilidade, ainda é limitado aos planos de desenvolvimento. O meu entendimento, que acompanha o de diversos estudiosos do tema e consta do Projeto de Lei nº 2.258/22 (“lei dos concursos”), é de que o modelo pode sim contribuir para o aprimoramento dos concursos públicos na seleção de candidatos com perfis mais compatíveis com os cargos e não comprometer o tratamento isonômico para a seleção pública.
AS: A pesquisa aponta seleções para ABIN, Polícia Federal e carreiras jurídicas como referências no uso da avaliação psicológica e comportamental. Na sua opinião, quais os desafios para o uso desses tipos de avaliação nos demais certames públicos e principais entraves a serem superados?
LR: Para as carreiras policiais, por exemplo, há previsão legal para que se realize avaliação psicológica dos candidatos. Da mesma forma, a realização de entrevistas dos candidatos é uma etapa prevista em lei para a seleção de diversos cargos da carreira jurídica e podem contribuir para a avaliação de aspectos comportamentais do candidato. Esses instrumentos específicos não foram objeto de análise da pesquisa, mas o que se pode apurar é que se não há previsão legal para inclusão dessas etapas o que se observa, novamente, é o peso da judicialização dos processos. Sob o argumento de que “se não há previsão legal, qualquer outro requisito possa hipoteticamente ferir a isonomia entre os candidatos deve ser vedado” a probabilidade de que a etapa ou o processo todo seja invalidado por decisão judicial é alta. Ou seja, mesmo sem vedação legal, devido a uma interpretação hiper restritiva do conceito de impessoalidade, os gestores são desestimulados a incluir instrumentos adicionais relevantes para que a administração pública identifique os candidatos mais aptos ao desempenho das atividades do cargo, e assim entregar resultados melhores para a sociedade.
AS: Em um cenário positivo para novos ingressos no setor público e com algumas autorizações já divulgadas, quais recomendações práticas elencaria para as organizações públicas que irão conduzir novos concursos?
LR: A pesquisa revelou que existe uma tendência das bancas e dos órgãos tentarem reproduzir no experiências consideradas bem-sucedidas, no intuito de evitar questionamentos jurídicos que possam atrasar ou interromper os processos seletivos já autorizados. Com esta premissa, o que se observa é que diversas práticas disponíveis são pouco exploradas ou sequer consideradas pelos órgãos contratantes. Primeiramente, eu recomendaria o levantamento de informações disponíveis na organização sobre os perfis ideais. Caso o órgão já tenha mapeado as habilidades e competências desejáveis para a ocupação do cargo, essas informações serão de grande relevância para a elaboração do edital e das provas. Caso não tenha, os desenhos dos processos internos, por
exemplo, já podem contribuir para a identificação de conhecimentos e habilidades esperadas dos futuros servidores.
Outro ponto identificado na pesquisa é que os editais não indicam as habilidades esperadas para o cargo. É de grande relevância, tanto para o candidato quanto para o próprio órgão, explicitar que o futuro servidor deverá trabalhar em equipe, ou que seja capaz de gerenciar projetos, por exemplo. Quanto à avaliação, sugeriria a inclusão de questões diretamente relacionadas às atividades a serem desenvolvidas pelo servidor, nas provas escritas e especialmente nas atividades e avaliação do curso de formação. Note-se que a “lei dos concursos” em trâmite no Congresso Nacional pretende dar maior segurança ao gestor público na adoção das práticas mencionadas e outras nesse sentido, mas todas as medidas aqui sugeridas já são admitidas pelo atual arcabouço legal.
AS: Na sua opinião, o que ainda precisa ser investigado no que se refere aos concursos públicos?
LR: Existe um vasto campo de pesquisa a ser explorado quando se trata de concursos públicos e processos seletivos para a administração pública brasileira. A seleção sob o ponto de vista da promoção da equidade racial e de gênero, por exemplo, é uma questão em voga e sobre qual deveremos ver pesquisas no futuro próximo. Da mesma forma, espero que outros pesquisadores desenvolvam estudos sobre outras carreiras da administração pública e estudos comparados com processos seletivos para carreiras públicas em outros países.
Aleksandra Santos – Doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília, com estágio sanduíche na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, da Universidade de Coimbra, Portugal. Atualmente ocupa o cargo de Secretária de Gestão de Pessoas no TRT 10ª Região. Atuou como dirigente de gestão de pessoas nos seguintes órgãos da Administração Pública Federal: Ministério da Justiça – MJ, Superintendência Nacional de Previdência Complementar – Previc e Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico e Nacional – Iphan. É instrutora e orientadora da Escola Nacional de Administração Pública – ENAP. Atua principalmente nos seguintes temas: gestão de pessoas, competências no trabalho e nas organizações, carreiras e avaliação de desempenho.
Lívia Resende Lara – Servidora pública da carreira de especialista em regulação de transportes aquaviários desde 2006, atualmente compõe a equipe do Programa de Gestão do Desempenho- PGD, na D!NOV/MGI. Tem experiência em regulação de transportes e infraestrutura, negociações multilaterais, gestão de processos e assessoria de dirigentes. Mestre em Gestão de Políticas Públicas (USP), pós- graduada em Gestão de Pessoas e Coaching (Uniceub) e graduada em Direito (UFSC). Participa do Núcleo de Estudos, Pessoas e Trabalho-NEPOT e tem interesse em temas de inovação e pessoas no setor público. É “mãedrasta” do Igor e do Iago, gosta de começar o dia fazendo exercícios e está sempre planejando a próxima viagem.