Caríssimos leitores!
O desenvolvimento de lideranças é uma realidade concreta no setor público, com percebida tendência de expansão. Porém, como a administração pública poderá abordar os inúmeros casos de servidores(as) que têm aversão à liderança e a ocupar os cargos de chefia? Para falar sobre esse e outros assuntos, a Juliana Legentil, doutoranda e mestra em Administração pela Universidade de Brasília e Coordenadora de Pesquisas em Gestão de Pessoas e Desenvolvimento Organizacional na Presidência da República, convidou Wallace Sousa, Auditor-Federal de Finanças e Controle da Controladoria-Geral da União (CGU) e com mestrado recentemente concluído pela EBAPE/FGV sobre o tema de nossa conversa de hoje (leia aqui), para uma entrevista. Confiram!
Pergunta 1: Como surgiu o interesse pelo tema de pesquisa?
R: Minha intenção, desde o começo, sempre foi estudar liderança porque é um tema pelo qual me apaixonei quando entendi o que significava realmente liderança. Eu li vários livros, fiz muitos cursos e dei palestras sobre o tema, então era algo que me atraía. Porém, a ideia inicial era estudar ‘estilos de liderança’ e, ao apresentar o tema para a orientadora, ela me abriu os olhos para algo óbvio que eu, até então, desconhecia: eu não teria nada de novo a acrescentar a esse tema porque ele já havia sido muito bem explorado. Ela, então, me apresentou a ideia da aversão à liderança, um tema com algumas observações empíricas que demandaria uma pesquisa que confirmaria, ou não, o fenômeno. E, por ser algo novo, havia um elemento adicional de dificuldade justamente porque ele ainda não havia sido tão abordado em pesquisas acadêmicas. Ciente do desafio, eu aceitei estudar esse tema principalmente por causa da possibilidade de trazer uma contribuição relevante não apenas para a área acadêmica mas, também e em especial, para a Administração Pública que era a maior impactada pelo fenômeno.
Pergunta 2: Você cita autores que reforçam que a liderança não se confunde com um cargo ocupado. Como você avalia as implicações do uso dos conceitos líder e chefia/gestor como sinônimos?
R: De fato, ser líder envolve e transcende a ocupação de um cargo. Em minha avaliação e visão, a designação para ocupar um cargo se dá muito mais porque o escolhido demonstrou conhecimentos, habilidades e atitudes para assumir a responsabilidade de liderar outros. Ou seja, ele havia sido visto e avaliado como líder antes mesmo de assumir a posição. Por outro lado, alguém que ocupa uma posição de liderança e a perde está meramente evidenciando o reflexo de uma avaliação negativa de seu desempenho como líder. Logo, chefe e gestor, com raras exceções, devem ser também líderes tendo em vista que existe um equilíbrio tênue entre resultados e relacionamentos. Um chefe ou gestor focado unicamente em resultados pode gerar um clima de descontentamento na equipe que, mais cedo ou mais tarde, acabará por minar sua posição como chefe. Já o oposto, um chefe preocupado apenas em manter um bom relacionamento na equipe, mas descuidando dos resultados, encurtará sua permanência na chefia porque ele está ali, em última análise, para entregar resultados. Dito isso, um chefe deveria ser enxergado também como líder e, caso não o seja, ele deveria urgentemente se conscientizar disso e, ato contínuo, fazer algum dos inúmeros treinamentos e capacitações disponíveis atualmente para sanar essa lacuna profissional. Quem se recusar a mudar por iniciativa própria acabará descobrindo, da pior forma, que ele será mudado à força (dispensado).
Pergunta 3: Em sua pesquisa emergiram cinco categorias de conteúdos centrais sobre aversão à liderança. Você poderia discorrer sobre o conjunto de percepções que apontam para uma relação custo x benefício desfavorável?
R: As categorias centrais que surgiram na pesquisa evidenciaram basicamente duas coisas: o que era esperado e o que surgiu dos dados, que se tornou matéria-prima para a pesquisa por meio da Grounded Theory. As categorias centrais ‘afetividade negativa’, ‘lacunas de competência’, ‘deficiências internas’ e ‘ameaças externas’ eram mais ligadas, aparentemente, às teorias Who Will Lead (Quem Vai Liderar) e Motivation to Lead (Motivação para Liderar) e isso já era, de certo modo, esperado porque a teoria apontava nessa direção. Porém, a última categoria central ligada ao ‘custo x benefício’ não estava tão alinhada a essas duas teorias como as categorias anteriores e isso se tornou um desafio na análise dos dados. Foi então que surgiu, incidentalmente em um encontro pessoal, a teoria Quiet Quitting que estava surgindo após o stress que as categorias ligadas à área de saúde estavam vivenciando pós 2020. Essa teoria em desenvolvimento apontava que a desistência silenciosa (a tradução literal de Quiet Quitting) estava ligada ao sentimento de esgotamento por causa de uma situação atual ou devido a uma experiência desagradável do passado. Essa última teoria foi o que permitiu ligar os pontos com as falas obtidas dos entrevistados e que, coincidentemente ou não, representava o maior número de citações dos entrevistados, ora pontuando a sobrecarga atual ora relembrando traumas vividos anteriormente. Assim, a percepção dos entrevistados girava em torno de uma situação que eles consideravam insustentável manter ou apontavam para uma experiência que eles não queriam repetir, que fechava o ciclo do fenômeno da aversão à liderança com a teoria Quiet Quitting e as falas obtidas nas entrevistas. Pensando de uma forma prática, a Quiet Quitting é a versão profissional de situações que todos nós vivemos nas demais áreas da vida: conjugal, familiar, sentimental, etc com o agravante que a área profissional impacta fortemente todas as demais.
Pergunta 4: Há relatos de ausência de capacitações para quem ocupa cargo de chefia, embora sejam inúmeras as oportunidades voltadas ao desenvolvimento de lideranças oferecidas por escolas de governos. Como você avalia o protagonismo dos servidores em relação ao seu autodesenvolvimento e o suporte oferecido pelas organizações para que os ocupantes de cargos consigam conciliar cursos e agendas de trabalho?
R: Essa é uma pergunta tanto pertinente quanto interessante. Quando eu fiz a apresentação dessa pesquisa para os servidores da CGU recentemente, um fato curioso surgiu: um servidor reclamou da ausência de capacitação direcionada a líderes e a nova diretora pontuou, acertadamente, que na CGU, especificamente, havia sido oferecido um leque significativo de cursos voltados aos líderes. A pergunta, então, deixa de ser ‘há cursos suficientes para líderes atuantes’ para ‘por que os líderes atuais não fazem os cursos de aperfeiçoamento e capacitação disponíveis’. Essa pergunta muda completamente a abordagem: os cursos atuais possuem boa qualidade? São oferecidos no formato que atende às necessidades dos líderes? A divulgação desses cursos é eficaz e o público-alvo está sendo alcançado? E, por último mas não menos importante, existe uma política para se cobrar dos líderes cursos dessa natureza e a abertura de espaços em suas agendas para a realização desses cursos? Embora as respostas possam combinar um pouco de cada uma desses aspectos, minha avaliação é que a Administração Pública deveria criar uma política efetiva de atualização por parte dos líderes atuais com foco nessas duas coisas: cobrança do aperfeiçoamento profissional e possibilidade de espaço na agenda desses líderes para se aperfeiçoarem. Enquanto isso não se tornar uma iniciativa institucional, nós nos veremos nesse eterno movimento de enxugar gelo, perda de tempo e desperdício de recursos, sem falar no crescente clima de insatisfação atual.
Pergunta 5: O medo de responder a processos administrativos parece ser um componente importante da evitação de posições de liderança, segundo a pesquisa. Considerando a sua experiência acadêmica e profissional, a retribuição pecuniária do cargo deveria considerar o risco inerente ao desenvolvimento da atividade gerencial?
R: Durante uma de nossas disciplinas, o profº Drº Gaetani, em uma de suas aulas, chamou a atenção para aquilo que ele chamou em um artigo para uma revista de “Apagão das Canetas”. Esse fenômeno estaria ligado à cultura lavajatista (citada por um dos entrevistados) que era referida como uma condenação prévia junto à opinião pública antes da condenação jurídica. Na visão desse entrevistado, ter seu nome exposto em um jornal de abrangência regional ou nacional, mesmo que sua inocência ficasse provada depois, não evitava o prejuízo causado pela exposição anterior pois a “reputação já tinha ido pelo ralo”. Já o artigo do profº Gaetani, complementado com o comentário em aula, certas oportunidades eram pesadas pelos pretendentes sob o prisma de se o ganho adicional comportava um colchão financeiro para cobrir os custos de um processo de natureza administrativa ou judicial. Portanto, sua pergunta toca num ponto sensível e pertinente, mas não sei dizer se a solução passa pelo aumento financeiro, pois isso poderia criar outras distorções. Talvez a solução fosse criar um ambiente em que o gestor se sinta confortável para atuar dentro dos limites legais e que os órgãos de controle, em especial a CGU da qual eu faço parte, pudesse atuar não apenas apontando os erros cometidos mas atuando junto ao gestor que assim o desejar assessorando-o no sentido de evitar que erros sejam cometidos inadvertidamente e involuntariamente. É um tema polêmico, mas considero muito positivo que esteja sendo trazido à tona para que alternativas e soluções adequadas possam surgir de um debate saudável.
Pergunta 6: Poderia elencar três recomendações práticas para evitar o desenvolvimento de comportamentos aversivos à liderança na administração pública?
R: Essa é uma pergunta que talvez não tenha uma única resposta e, apesar de a aversão à liderança ter sido o foco da minha pesquisa, não me sinto mais habilitado do que qualquer outra pessoa para dar esse tipo de recomendação. Porém, dada a importância da pergunta, vou me arriscar a oferecer alguma sugestão útil. Todavia, antes de prosseguir, seria pertinente questionar: a sugestão será dada ao gestor da Alta Direção para evitar que os líderes abaixo dele desenvolvam a aversão ou a um líder em uma posição genérica? Considero que ambos precisam de um direcionamento nesse sentido, portanto tentarei dar sugestões que possam atender tanto a um como ao outro. Para o gestor da Alta Direção que quer ter líderes abaixo de si longevos e entregando bons resultados, além de um criterioso e eficaz processo de seleção, o que já é comum hoje, eu sugeriria que desenvolvesse e nutrisse um canal de comunicação franco e aberto com seus líderes para que ele não fosse surpreendido pelo pedido inesperado de dispensa de um líder sob sua direção. E, enquanto a cobrança por aperfeiçoamento contínuo não se torna uma política institucional, que o gestor incentive e cobre seus líderes quanto a isso, o que implica desenvolver um processo de descoberta e desenvolvimento de novos talentos que possam “tocar o barco” enquanto o capitão se aperfeiçoa. Já para os líderes abaixo da Alta Direção, que eles estejam atentos aos primeiros sinais de stress e cobrem abertura de seus chefes superiores para informar que algo não está certo, para evitar que a sobrecarga se torne um peso insustentável e a saída seja inevitável. E isso envolve, também, uma postura humilde e, de certa forma, assumir suas vulnerabilidades e limitações perante seus liderados. Como muito bem disse Brenè Brown em seus livros que tratam sobre vulnerabilidade, assumir que você não é perfeito não é um sinal de fraqueza, mas de grandeza por parte do líder. Além disso, eu diria que o líder deve enxergar aqueles que se destacam e que, eventualmente, podem ser seus sucessores como aliados em vez de ameaças. Hanz Finzel, em seu livro The Top Ten Mistakes Leaders Make, diz que um dos piores erros que um líder pode cometer é boicotar e sabotar quem se destaca em seu time porque ele está, em última análise, sabotando seu próprio futuro na organização. Sei que essas recomendações não serão vistas como uma “bala de prata” e não tão fáceis de serem postas em prática, mas que pelo menos sirvam de ponto de partida para sugestões melhores no futuro.
Pergunta 7: O que ainda precisa ser investigado sobre a aversão à liderança?
R: Praticamente tudo. Eu me arrisco a dizer com extrema franqueza e humildade que minha pesquisa apenas arranhou a superfície do fenômeno. O grande mérito de minha pesquisa não foi ter trazido algum dado espetacular ou apontado alguma solução extraordinária. O maior benefício trazido por ela foi ter trazido o tema à luz e revelado, em especial para os gestores públicos, que existe um fenômeno que merece atenção e que precisa ser endereçado o mais rápido possível antes que seus efeitos causem danos irreparáveis. Os líderes, como foi bem pontuado em um dos artigos científicos que li para a pesquisa, foram escolhidos justamente por sua capacidade de entregar resultados. E essa entrega de resultados é o que sustenta e garante o futuro de uma organização, seja ela pública ou privada. Logo, uma crise de liderança ameaça a continuidade do negócio para usar uma expressão muito em voga hoje. Portanto, eu gostaria que estudiosos e especialistas no tema liderança atentassem para esse fenômeno e se debruçassem sobre ele para que surja um debate salutar que traga sugestões melhores que as minhas e proponha soluções que, de fato, mitiguem o risco de uma crise de liderança que ocasione uma descontinuidade e possível paralisia, ainda que temporária, em importantes organizações e serviços públicos do Brasil. E, pensando alto, quem sabe essa discussão se estenda além fronteiras e o Brasil possa assumir o protagonismo nesse debate em benefício de líderes e organizações em outros países do mundo.
Wallace Sousa – Possui graduação em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1998) e pós-graduação em Teologia pela SEBI (2014) e Mestre em Administração Pública pela EBAPE/FGV (2022). Atualmente é AFFC – Auditor-Federal de Finanças e Controle da Controladoria-Geral da União (CGU). Possui experiência na área de Administração, com ênfase em Política e Planejamento Governamentais e atuou como Especialista em Aquisições pelo BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento. Escreve na internet desde 2009, já publicou alguns livros e é palestrante desde 2017 dos seguintes temas: liderança, motivação e construção de equipes de alta performance, além de experiência com compras públicas, pesquisa e inovação no serviço público. https://www.linkedin.com/in/wallysou/
Juliana Legentil é doutoranda e mestra em Administração pela Universidade de Brasília, linha de pesquisa Gestão de Pessoas e Estudos Organizacionais. Integra o Grupo E-trabalho, certificado pelo CNPq, realizando pesquisas sobre as percepções e práticas de servidores e gestores em contexto de teletrabalho e exerce a função de Diretora Acadêmica da Sociedade Brasileira de Teletrabalho (SOBRATT).
https://www.linkedin.com/in/juliana-legentil/