EGP Entrevista: Lana Montezano

Caríssimos leitores!

A inovação é uma temática retratada de maneira consistente e transversal em nossos boletins, aparecendo ora em atos normativos, ora em julgados, ora nos trabalhos científicos e eventos divulgados. Tivemos a satisfação de reunir, para uma breve conversa sobre o tema, dois atores de vanguarda da inovação no setor público no Brasil: o professor e servidor da Agência Nacional de Aviação Civil, Rodrigo Narcizo, entrevistou a professora e doutora em Administração pela Universidade de Brasília, Lana Montezano. Confiram!

Rodrigo Narcizo – Não existe uma definição consolidada ou consagrada de “inovação no setor público”. Quais são os impactos deste fenômeno nos estudos sobre o assunto? E como você definiria “inovação no setor público”?

Lana Montezano – Rodrigo, realmente esta é uma discussão de décadas. A definição de inovação no setor público é originada de inovação em serviços, que também vem sendo discutida há quase um século, e ainda não está consolidada. A problemática desta falta de clareza conceitual do que vem a ser efetivamente a inovação no setor público acarreta em algumas consequências, tais como a dificuldade de identificar iniciativas que realmente sejam inovações, de identificar aspectos que influenciam na inovação, e até mesmo de mensurar a inovação, seus resultados e impactos.

Em alguns casos parece que houve uma repaginação de conceitos antigos usando o nome de inovação, mas sem gerar novos conhecimentos sobre a temática. É preciso tomar muito cuidado com o “modismo” que passa a considerar tudo inovação, correndo o risco até de banalizar o termo de inovação no setor público. Com isso, temos desafios tanto na realização de pesquisas como na gestão da inovação no setor público propriamente dita, devido a esta falta de consolidação da definição. Para efeito de exemplificação, no momento, estou conduzindo uma pesquisa sobre o impacto de inovações tecnológicas, e ao buscar experiências práticas, as pessoas me perguntavam também o que eu entendia como inovação, e inovação tecnológica para saber se o caso dela poderia ser considerado como uma inovação.  No caso da pesquisa desenvolvida na minha tese, tive esta preocupação de alinhamento conceitual também, quando eu fui fazer a coleta de dados, envie previamente aos participantes um glossário explicando o que eu considerava como inovação, dimensões da inovação, e as competências em cada nível (organizacional, de equipe e individual) – a intenção era que os participantes tivessem clareza do que eu considerava como inovação.

No meu entendimento, a inovação no setor público, significa transformar algo intencionalmente para melhorar e criar valor público, seja na criação de novos serviços, novos canais de oferta de serviços, novas métodos e processos para geração dos serviços públicos. A inovação remete a mudança de condição de algo com foco no resultado que ela vai proporcionar. Inovação não é ter ideias, mas sim implementar algo novo que gerem efeitos agregando valor à sociedade. Hoje em dia, incorporamos premissas do conceito de inovação aberta e inovação social para a inovação no setor público no sentido de ser fundamental cocriar e coproduzir com diferentes atores, incluindo os usuários que serão beneficiados com os resultados da inovação para compreender as necessidades deles, e ter sempre o foco no objetivo social. Com isso, tem discussões se melhoria de processos é uma inovação, se criar um novo sistema / aplicativo seria uma inovação ou não – entendo que se eles gerarem melhorias de qualidade do trabalho, eficiência, eficácia, economicidade, maior segurança e transparência, pode ser considerado sim uma inovação, mas lembrando que é preciso envolver quem vai usar este processo e aplicativo.

RN – Dr.ª Lana, quais foram as suas inquietações que a levaram a construir um modelo, original e inédito, de competências para inovação no setor público brasileiro para organização, equipes e indivíduos?

LM – Rodrigo, primeiramente agradeço pelas qualificações ao modelo, realmente não identifiquei nas minhas buscas alguma publicação científica ou experiência em organizações públicas que tivessem a especificação das competências nos três níveis de forma transversal para qualquer organização pública.  Isto acabou reforçando a minha inquietação quanto à necessidade de relacionar estes três níveis. Quando comecei a estudar e trabalhar com gestão por competências há alguns anos, apesar de haver a classificação das competências quanto ao nível da organização, equipe e indivíduos, e dos estudos indicarem a relação teórica de influência destes níveis, o que parece muito óbvio pela questão do próprio isoformismo, mas não identifiquei iniciativas também em outros contextos que demonstrassem empiricamente esta relação. Existe um viés em focar apenas em estudos de competências no nível do indivíduo, no entanto, precisamos avançar, pois existem competências que só são demonstradas quando ocorre a sinergia entre as pessoas, como vemos em uma orquestra ou em jogos esportivos de equipes, por exemplo. A própria competência organizacional também é extremamente necessária para que se tenha clareza quanto à atribuição e práticas organizacionais que possam proporcionar a inovação. A inquietação veio desta lacuna científica e prática referente aos três níveis das competências. Já a escolha do contexto aplicado à inovação no setor público foi decorrente de fazer parte de um Laboratório de Inovação da Universidade de Brasília, no qual temos plena clareza da relevância da inovação no setor público para contribuir com o aperfeiçoamento da prestação de serviços públicos à sociedade, e gostaríamos de avançar em estudos que identificassem determinantes para a gestão pública inovadora, por isso partimos do modelo GESPUBLIN desenvolvido pelo Prof. Isidro, o qual indica a necessidade de quatro dimensões para inovar no setor público: ambiente, capacidade, atividades e resultados de inovação. Além disso, a intenção também foi que os resultados desta pesquisa pudessem ser divulgados ao conhecimento dos profissionais que atuam com inovação, de modo a proporcionar informações que subsidiem ações ao desenvolvimento organizacional, de equipes e indivíduos à inovação.

RN – Quais foram as suas maiores descobertas e aprendizados durante a pesquisa para a construção do modelo multinível de competências para inovação no setor público brasileiro?

LM – A partir da participação de 41 profissionais que pesquisam ou que trabalham com a prática de inovação no setor público, sendo pessoas de seis diferentes Estados, de todas as esferas de governo e de poder, inclusive alguns foram ganhadores do prêmio de inovação da Enap, pude coletar a consolidar informações que subsidiaram a concepção do modelo multinível de competências para inovação no setor público, o qual é constituído de nove competências organizacionais, 18 competências de equipe e 32 competências individuais. Cada uma delas recebeu um nome e uma descrição para que as pessoas compreendam com clareza o que vem a ser a competência, e permitir que possam coloca-las na prática. Neste caso, já foi um avanço ao modelo da OCDE que indicava a necessidade de apenas seis competências para os indivíduos. Foi possível identificar quais competências de equipe e individuais podem contribuir de forma mais direta para cada uma das diferentes dimensões do modelo GESPUBLIN, então se um gestor precisar alocar um servidor para trabalhar em uma determinada etapa do processo de inovação, a pesquisa apresenta quais competências foram indicadas como mais recorrentes para atuar na gestão do ambiente de inovação, na geração de ideias, na implementação da inovação, na difusão e na gestão dos resultados da inovação, e assim por diante. Essa vinculação deixa claro que nenhuma equipe e indivíduo precisa ter todas as competências elencadas, mas vão precisar de um conjunto delas, a depender do momento que forem atuar na inovação. Ninguém precisa ser um super-herói para inovar tendo todas as 32 competências, algumas foram indicadas como necessárias em todos os momentos, como a Aprendizagem contínua e a Resiliência, mas outras foram específicas só para algumas etapas como Mensuração e avaliação de resultados e impactos para a gestão dos resultados da inovação. Por isso a multiprofissionalidade é uma das competências de equipe para aproveitar os diferentes perfis para inovar. Já no nível da organização, ela precisaria ter realmente as nove competências mesmo. Uma outra descoberta foi a possibilidade de relacionar, a partir do escopo estabelecido na descrição das competências, quais competências individuais contribuem para a demonstração de uma competência de equipe e da organização.

Além disso, tive a oportunidade de transformar a lista das competências em um questionário eletrônico que foi aplicado com 674 pessoas de todos os Estados Brasileiros, o que permitiu que eu obtivesse evidências de validade estatística referente a todas as competências propostas individualmente devido aos índices de qualidade interna (carga fatorial), além de excelentes índices de confiabilidade indicando que aquelas competências realmente compõem cada um dos níveis e o modelo geral, e ainda com bons percentuais de variância explicada (todos acima de 75%) – isso indica que se as organizações, equipes e indivíduos demonstrarem este conjunto de competências nos diferentes níveis, irá explicar mais de 75% da ocorrência da gestão da inovação.  E finalmente, também foi possível demonstrar estatisticamente a relação positiva e significativa entre os diferentes níveis das competências.

Como são muitas competências, convido a conhecerem a lista com as descrições, a proposta de relação entre os diferentes níveis e indicação do quais são necessárias para dimensão do GESPUBLIN (ambiente, capacidade, atividades e resultados de inovação), e os efeitos estatísticos da relação pelo link https://repositorio.unb.br/handle/10482/41247

Se for possível, gostaria de fazer um parênteses agradecendo a todos que participaram da pesquisa, tanto nas entrevistas, grupos focais e respondendo o questionário em plena pandemia, e que acreditaram na pesquisa e tiveram interesse em conhecer os resultados para utilizarem em melhorias nas suas organizações. Tive retorno de pessoas que tiveram insgihts ao responder o questionário para elaborar o planejamento das ações de inovação na organização pública que trabalhava. Após a defesa da tese, teve uma pessoa me pediu o link do questionário para responder e se autoavaliar nas competências para inovação, pois estava com a responsabilidade de criar e implementar um laboratório de inovação na organização – isso a ajudou a refletir aspectos que precisam ser adotados para criação do laboratório e formação da equipe, além de ainda me ajudar a complementar a base de dados para realizar novas análises de dados para geração de novos conhecimentos. Foi uma satisfação e um grande aprendizado a mobilização do ecossistema de inovação do setor público que atuou de forma tão colaborativa!  

RN – O que caracteriza uma liderança inovadora no contexto do setor público? Qual é a sua importância para a promoção uma cultura de inovação nas organizações públicas?

LM – Interessante sua pergunta Rodrigo, pois a liderança orientada para inovação é uma das competências que diversos autores indicam como determinantes para inovação, inclusive para promoção da cultura inovadora, além de ter sido recorrente na fala dos entrevistados na minha pesquisa e ser recomendada pela OCDE.  A liderança apareceu como competência em dois níveis – no organizacional e no individual.  No nível organizacional ela é caracterizada como fonte de patrocínio e viabilização de ações ao estímulo, desenvolvimento e engajamento de diferentes atores, sejam eles internos ou externos à organização, visando potencializar a inovação alinhada à estratégia da organização. De forma prática, esta liderança garante que tenha objetivo estratégico orientado à inovação, adota critérios de prioridade às ações de inovação e uso de sistema de comunicação que traduza a intencionalidade aos servidores públicos e cidadãos, viabiliza o suporte organizacional de disponibilização de recursos humanos, financeiros, tecnológicos, de infraestrutura, além permitir a flexibilidade e autonomia das equipes que atuarão com a inovação. No nível individual, a liderança é caracterizada como o indivíduo que vai proporcionar condições necessárias ao processo de inovação, por meio de viabilização de recursos necessários, articulando com a alta administração, além do estímulo, orientação, direcionamento e valorização das pessoas e equipes dentro de um ambiente flexível, participativo e construtivo na geração dos resultados almejados. Este líder pode influenciar a cocriação; estimular a criatividade, o comportamento inovador na equipe, o gerenciamento dos conflitos de interesse e a promoção e superação de barreiras para colaboração das pessoas para criar valor público por meio da inovação colaborativa.

A importância da liderança para a cultura organizacional orientada para inovação é o fato de que no nível organizacional são estabelecidas práticas organizacionais que permitem a incorporação de ações inovadoras e no nível individual por estimular o comportamento inovador. De modo geral, eu diria que as ações da liderança servem como exemplo, inspiração e tradução de valores para que as pessoas acreditem que realmente está ocorrendo uma mudança e que tenham mais segurança para inovar devido ao apoio efetivo da liderança.

RN – “É tudo sobre pessoas” é uma expressão usada de forma recorrente tanto para valorizar o aspecto humano na inovação quanto para ironizar este foco em detrimento de outros aspectos do processo inovador. Em sua perspectiva, qual é a importância das pessoas para a inovação no setor público?

LM – As pessoas são a força motriz da inovação, e apesar do modelo proposto ser multinível, os demais níveis dependem das pessoas também.  As competências organizacionais são a mobilização de recursos e remetem a um conjunto de práticas para inovar, e quem define e executa estas práticas são as pessoas. A interação e sinergia da equipe depende do quanto as pessoas estão dispostas a contribuir com a inovação. Na prática, são as pessoas que identificam, analisam os desafios, propõem e implementam as soluções inovadoras, mesmo que isso ocorra dentro de uma equipe, mas tudo é feito por pessoas. Por isso é fundamental que sejam estabelecidas as práticas organizacionais de gestão de pessoas para inovação, de modo a permitir a alocação, desenvolvimento e reconhecimento das pessoas. Como são as pessoas que geram a inovação, mesmo que seja em uma equipe ou representando a organização, é preciso que as pessoas tenham as competências, condições e motivações para inovação. Faço aqui uma ressaltava de que a competência organizacional teve a menor média na percepção dos participantes da pesquisa foi a de gestão de pessoas para inovação, indicando que precisam aperfeiçoar este ponto para serem adequadamente realizada pelas organizações públicas.

Lana Montezano, Formada em Administração (UniCEUB), com prêmio mérito acadêmico concedido pelo CRA-DF, Especialista em Administração de Recursos Humanos (FGV-Núcleo Brasília), Mestra e Doutora em Administração com temas de diagnóstico de competências, e modelo multinível de competências para inovação no Setor Público (PPGA/UnB). Possui experiência em Consultoria, Pesquisa e Docência na área de Administração, com ênfase em Gestão de Pessoas, Gestão por Competências, Inovação, Gestão de Processos, Gestão de Riscos, Gestão de Projetos, Diagnóstico e Estruturação Organizacional. Participa como pesquisadora e vice coordenadora do Laboratório de Inovação e Estratégia em Governo – LineGov|UnB (desde 2014). Líder do tema de “Competências e Aprendizagem” da Divisão de Gestão de Pessoas e Relações do Trabalho da Associação Nacional de Pós-Graduação em Administração (ANPAD). Autora de trabalhos publicados nacionalmente e internacionalmente em eventos, periódicos e capítulo de livros (http://lattes.cnpq.br/8876142292537855).  Contato [email protected]

Rodrigo Narcizo, Mestre em Educação e pedagogo pela UERJ. Cofundador da rede Conexão Inovação Pública RJ. Servidor público federal ocupante do cargo de Especialista em Regulação de Aviação Civil na Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), com atuação em gestão de pessoas, gestão do conhecimento, fomento e parcerias, inovação e escritório de projetos. Professor universitário, entusiasta da inovação no setor público e, acima de tudo, aprendiz. Contato: [email protected]