Caríssimos leitores!
O teletrabalho é uma realidade concreta no setor público, com percebida tendência de expansão. Diversos órgãos estão se adaptando ao home office enquanto a normatização sobre o tema evolui no seio da Administração Pública. Para falar sobre esse assunto, nosso estimado entrevistador Eduardo Paracêncio convidou Juliana Legentil, doutoranda e mestra em Administração pela Universidade de Brasília e especialista no tema, para uma entrevista. Confiram!
Eduardo Paracêncio – O tema do seu mestrado foi sobre desenho do teletrabalho: percepções e práticas. Quais foram as principais conclusões da sua pesquisa?
JL: Os resultados identificados na pesquisa apontam que a adesão ao regime de teletrabalho não representa apenas uma transposição do trabalho que era realizado na organização e passa a ser executado em casa ou em qualquer outro espaço escolhido pelo trabalhador. São percebidas mudanças nas características da tarefa, sociais e no contexto de trabalho, em relação ao trabalho presencial. Com base nesses resultados, recomenda-se que as características do trabalho sejam consideradas, uma vez que podem influenciar as percepções de teletrabalhadores no tocante à satisfação pessoal e no trabalho; ao engajamento no trabalho; à produtividade (autopercepção e pelo gestor); à exaustão; ao equilíbrio trabalho-família; entre outros.
Considerar as necessidades de aprendizagem requeridas pelas mudanças nas características do trabalho também pode contribuir para a adaptação do trabalhador ao regime de teletrabalho e para a otimização dos resultados, à medida que o teletrabalhador possivelmente terá de lidar com demandas de informática não solucionáveis pelo suporte de informática (e que pode não existir em algumas organizações); de comunicação mediada por meios eletrônicos (que pode requerer maior capacidade e habilidade de comunicação não-verbal); além de lidar com a liberdade, que poderá exigir maior autodisciplina do trabalhador.
Apesar de reconhecer as contribuições da minha pesquisa e de tantas outras realizadas nas últimas décadas, é notório que precisamos avançar. Boell et al. (2016) nos convida a investigar o tema a partir de uma perspectiva prática, buscando lançar luz sobre a existência de resultados inconclusivos ou contraditórios. Para os que valorizam as evidências científicas, eu diria que estamos no início de uma longa e intrigante caminhada …
EP- Como as pesquisas nas universidades podem ajudar na implementação do home office no setor público brasileiro?
JL: As pesquisas realizadas nas universidades podem contribuir à medida que a tentativa de compreensão do fenômeno se dá a partir de diferentes elementos que visam assegurar o rigor metodológico. A revisão da literatura, etapa essencial às pesquisas científicas, permite, por exemplo, identificar quais as percepções dos trabalhadores que permanecem no regime presencial enquanto apenas alguns são considerados elegíveis ao teletrabalho, num contexto em que todos executam as mesmas atividades. Outro aspecto pontuado é a relação entre a intensidade do teletrabalho e variáveis como satisfação no trabalho e conflito trabalho-família.
Na pós-graduação há forte preocupação com os instrumentos adotados e/ou desenvolvidos. Não basta, por exemplo, traduzir um questionário desenvolvido em outro país e aplicá-lo no Brasil. Quem trabalha com isso sabe que é preciso traduzir, retraduzir, submeter a avaliação de especialistas, além de aplicar numa pequena amostra de potenciais participantes para assegurar que as perguntas estão suficientemente inteligíveis. Recorrer às universidades é uma das formas de superar as limitações das equipes que precisam realizar diagnósticos, mas, naturalmente, se ocupam de outras questões de ordem técnica.
Parceria com universidades, especialmente brasileiras, podem gerar resultados promissores para as partes envolvidas. O teletrabalho no Poder Executivo Federal, por exemplo, está fundamentado em um dispositivo do Decreto nº 1.590/1995, período abundante em tentativas de imprimir maior ganho de eficiência na administração pública brasileira. Estudar o teletrabalho no setor público brasileiro, salvo engano, passa necessariamente pela tentativa de compreensão desse contexto no qual ele está inserido. E, por isso, reunir evidências de diferentes áreas do conhecimento pode contribuir para o levantamento de informações que sejam úteis às organizações que desejam implementar e potencializar os efeitos benéficos da gestão orientada para o resultado por meio do teletrabalho.
Enquanto órgãos públicos possuem amplo número de potenciais participantes, pesquisadores estão ávidos por campo para testar hipóteses e contribuir para o desenvolvimento do Estado. A coordenação desses esforços mitigaria, por exemplo, a replicação de estudos no Brasil que continuam a investigar benefícios e desafios percebidos, caminho que eu também percorri recentemente quando os estudos eram raríssimos no setor público brasileiro.
EP-Muitos órgãos públicos passaram a adotar o teletrabalho após o início da pandemia. Quais têm sido, na sua visão, os maiores desafios desse processo?
JL: Não houve planejamento e isso explica vários desafios. Antes da pandemia os servidores aderiam de forma voluntária e providenciavam os equipamentos e mobiliários necessários à realização das atividades em regime de teletrabalho. Em 2019 percorri diferentes Estados e entrevistei dezenas de teletrabalhadores que mencionavam ter excelente infraestrutura residencial. Muitos, inclusive, tinham cômodo isolado.
A adoção repentina, em razão da pandemia, somada às aulas remotas das crianças e às tarefas domésticas gerou o caos. Nas primeiras semanas os desafios estavam muito associados à infraestrutura básica, como internet; cadeira inadequada; computador pessoal sem a configuração mínima requerida para o uso das ferramentas de trabalho; entre outros.
Como o passar dos meses as dificuldades ainda giram em torno da gestão orientada para o resultado; da dificuldade para desconectar-se do trabalho e, particularmente, do uso de novas tecnologias digitais de informação e comunicação. Embora isso pareça óbvio, na prática não é. Se as organizações oferecerem treinamento e suporte aos envolvidos, o teletrabalho tende a ser percebido tão somente como uma modalidade de trabalho.
EP-Na sua visão, quais são hoje os principais benchmarks em teletrabalho no setor público brasileiro?
JL: O Tribunal Superior do Trabalho e o Conselho Nacional de Justiça têm realizado um trabalho primoroso, buscando conciliar os interesses institucionais e o cuidado com o quadro funcional. O Ministério Público do Trabalho desenvolve um trabalho elogiável em relação à modalidade. Há alguns anos permitem o teletrabalho em tempo parcial e, mesmo antes da pandemia, já previa que alguns gestores poderiam realizar teletrabalho em situações pontuais. O suporte da equipe de TI do órgão é um grande diferencial.
O Tribunal de Contas da União tem uma trajetória em relação à modalidade que merece ser conhecida. O órgão atingiu um nível de maturidade antes da pandemia que o permitiu derrubar uma série de travas que, segundo os gestores envolvidos na reformulação da norma, não fazia mais sentido, à exemplo da vedação do teletrabalho para servidores em estágio probatório.
No Poder Executivo, um dos principais símbolos de implementação bem-sucedida é a Controladoria-Geral da União. A CGU trabalhou inicialmente com um pequeno rol de atividades elegíveis ao teletrabalho, permitindo de forma pontual a adesão de servidores pelo tempo determinado pela atividade. O desenvolvimento de uma ferramenta tecnológica contribuiu para o registro e o acompanhamento da experiência. À medida que as informações retroalimentam o planejamento estratégico do órgão, a CGU imprime uma lógica de ação com base nas evidências geradas.
O Cade, embora com menor tempo de estrada, se destacou no apoio aos servidores que estavam trabalhando remotamente no início da pandemia, os quais puderam solicitar equipamentos e retirá-los no drive-thru, por exemplo. Menos de um ano após o início da pandemia, a estratégia de implementação do Programa de Gestão, condição necessária ao teletrabalho após a pandemia, foi arrojada. Os servidores passaram a ser geridos com base em planos de trabalho independentemente da modalidade (presencial ou teletrabalho), o que os permite, em princípio, realizar as suas atividades fora do Distrito Federal (sede do órgão).
Sabidamente essas indicações não encerram as experiências exitosas no setor público brasileiro, mas são um norte para os que buscam aprender com os que já superaram a travessia inicial ou estão dispostos a escrever um novo capítulo, como o Cade.
EP-Como é possível mudar a mentalidade das chefias no setor público em deixar de controlar os horários dos servidores para gerenciar as entregas? A liderança em teletrabalho deve ser diferente da praticada no presencial?
JL: Vislumbro algumas alternativas que podem contribuir para essa mudança (gradual e lenta) de mentalidade. A principal, na minha avaliação, é investir no treinamento das lideranças. Novos conhecimentos e habilidades podem repercutir positivamente no comportamento do gestor e, ao sentir-se mais seguro para substituir o modelo tradicional, de controle de horários, pelo modelo de monitoramento das entregas, todos tendem a ganhar. Dar voz às lideranças que promoveram de forma exitosa a mudança pode estimular os pares.
Outro ponto central que contribuiria para a mudança de mentalidade é o suporte institucional. As queixas dos gestores, mesmo antes da pandemia, giravam em torno dos meios precários e excessivamente rígidos de monitoramento das entregas daqueles que faziam teletrabalho. Se a organização não prover, minimamente, as condições necessárias ao acompanhamento dos resultados, a percepção dos gestores dificilmente mudará e, talvez, tenha se agravado durante a pandemia. A mudança precisa ser percebida como positiva para todos, mesmo que em proporções distintas. Desde a década de 80 a literatura registra a resistência dos gestores como barreira à implementação do teletrabalho, logo, se não pensarmos em condições facilitadoras, dificilmente iremos propiciar um ambiente propício à mudança de mentalidade.
Outro ponto, não menos importante, é estimular o diálogo sobre a perspectiva de mudança. A percepção do valor que a equipe atribui ao teletrabalho pode influenciar a tomada de decisão. Se conversarmos sobre os anseios das pessoas que trabalham ao nosso redor, perceberemos o quanto a centralidade do trabalho ganha diferentes contornos entre as gerações. Não por acaso, há países que estabeleceram políticas de Estado para apoiar a conciliação trabalho-família. Negar essa realidade é, a meu ver, um equívoco. As pesquisas que realizamos nos meses iniciais da pandemia revelam alto percentual de servidores que gostariam de continuar realizando teletrabalho e, muitos desses sinalizam que optariam pelo regime parcial. Os gestores que insistem em argumentos frágeis para não permitir o teletrabalho após a pandemia, possivelmente perderão profissionais valiosos de suas equipes, seja por pedidos de movimentação ou, quiçá, pela insatisfação generalizada.
Sim, a modalidade teletrabalho exige um conjunto de habilidades bem mais refinadas e, embora muitas sejam úteis para a liderança na modalidade presencial, não se pode ignorar as diferenças de contexto. As agências federais americanas exigem que líderes e servidores passem por um programa de treinamento e no Brasil, há algumas iniciativas pontuais nessa direção. Um exemplo clássico é a habilidade para oferecer feedbacks. No presencial o gestor conta com a linguagem não-verbal e, em regra, consegue alinhar expectativas com maior desenvoltura. No remoto, a experiência pode ser trágica. Se o gestor, por exemplo, optar por mensagens de texto curtas e objetivas em ferramentas de comunicação instantânea, talvez tenha de gastar todo o tempo “poupado” inicialmente e mais um pouco para corrigir os equívocos de interpretação do receptor da mensagem.
EP-Na sua opinião, é possível o teletrabalho de servidores públicos brasileiros no exterior?
JL: Possível é, mas por hora acredito que o teletrabalho no exterior deva ser autorizado apenas em situações excepcionais. As atividades desempenhadas pelos servidores públicos nos diferentes Poderes e Órgãos me levam a pensar que a generalização de alguns obstáculos é, em princípio, um erro, mas, em regra, a imagem do servidor público é associada ao não trabalho. Esse risco de desgaste junto à sociedade precisa entrar na conta, sob pena de retrocedermos. Como servidora sinto que ainda estamos trabalhando para consolidar a possibilidade de trabalharmos focados nas entregas. Nesse momento, tornar o teletrabalho no exterior algo comum pode arruinar, inclusive, o teletrabalho realizado na região de domicílio do servidor. Há espaço para avançarmos na discussão dos pontos sensíveis, mas esse eu não classificaria como prioritário.
EP-Quais serão os principais desafios, na sua visão, da normatização do home office na administração pública brasileira?
JL: Os principais desafios parecem derivar da falta de confiança no servidor público e da tentativa de equiparar a autorização para o teletrabalho à concessão de uma benesse. Quando li a instrução que alcançava os órgãos públicos do Executivo Federal em 2018 a primeira reação foi: “não querem que o teletrabalho se torne uma realidade”. Na prática, poucos foram os órgãos que se aventuraram diante do amplo conjunto de “barreiras”.
Durante a pandemia foi publicada uma nova Instrução, um avanço digno de nota em vários quesitos. Claro que alguns pontos ainda são preocupantes, pois à medida que o ônus da infraestrutura é repassado integralmente para o servidor, temos uma situação de maior vulnerabilidade em relação à segurança da informação, por exemplo. Outros pontos que merecerão atenção referem-se às implicações da avaliação de desempenho do servidor e à extrapolação da jornada, em caráter excepcional.
Juliana Legentil é doutoranda e mestra em Administração pela Universidade de Brasília, linha de pesquisa Gestão de Pessoas e Estudos Organizacionais. Integra o Grupo E-trabalho, certificado pelo CNPq, realizando pesquisas sobre as percepções e práticas de servidores e gestores em contexto de teletrabalho, além do Grupo de Excelência do Trabalho na Sociedade em Transformação (GETST) do CRA-SP. Exerce a função de Diretora Acadêmica Adjunta da International Work Transformation Academy (ITA), rede mundial de colaboração interdisciplinar, que investiga internacionalmente o comportamento do trabalho virtual e novas formas de trabalho baseadas no uso de tecnologias digitais.