Lei nº 14.133/2021 e os novos limites para dispensa em razão do valor: Comemoração adiada

 

Gabriela Lira Borges é Mestre em Governança e Planejamento Público pela UTFPR. Especialista em Direito Constitucional pela Unisul. Especialista em Direito Tributário pela Uniderp/Anhanguera. Procuradora do Estado do Acre de 2005 a 2012. Consultora Jurídica da Consultoria Zênite de 2012 a 2016. Analista de Licitações do SESC Paraná de 2016 a 2017. Atualmente, Assessora Jurídica do SENAR Paraná.

Autora de diversos artigos jurídicos, versando especialmente sobre licitações e contratos, regime de pessoal dos servidores públicos e Sistema S e consultora jurídica na área de licitações, contratos e regime jurídico de servidores públicos.

Site: https://www.gabrielaliraborges.com/

LinkedIn: Gabriela Borges

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Entre as novidades que viriam com a Lei nº 14.133/2021, uma das mais aguardadas era o aumento expressivo dos valores para dispensa de licitação o que, de fato, veio a ser contemplado pelo artigo 75 o qual autorizou a dispensa de licitação para: a) contratação que envolva valores inferiores a R$ 100.000,00 no caso de obras e serviços de engenharia ou de serviços de manutenção de veículos automotores e b) para contratação que envolva valores inferiores a R$ 50.000,00, no caso de outros serviços e compras.

A Lei seguiu ainda benevolente neste tema quando, no parágrafo primeiro do mesmo artigo 75, previu que os valores nele mencionados serão duplicados para compras, obras e serviços contratados por consórcio público ou por autarquia ou fundação qualificadas como agências executivas na forma da lei1.

Como a compra direta sempre foi vista como uma hipótese mais simplificada e “menos burocratizada” de contratação, o aumento dos limites de valores para realizá-la foi, naturalmente, visto de forma bastante positiva e até comemorado. A comemoração, entretanto, parece ter sido interrompida ou ao menos adiada, quando se percorreu o todo da referida Lei e se constatou algumas condicionantes para a adoção dos almejados novos limites.

Nesse sentido, dois são os principais aspectos identificáveis na Lei que impactam sobre a adoção imediata (ou não) dos novos limites de valores trazidos pela Lei 14.133/2021, quais sejam, a necessidade de publicidade dos atos no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) e a adequação da instrução do processo aos termos do art. 72 da Lei em comento.

No que se refere ao Portal Nacional de Contratações Públicas, a Lei 14.133/2021 prevê a divulgação no PNCP do extrato do cartão de pagamento por meio do qual forem efetivados os pagamentos nos casos das dispensas em razão do valor. Ademais, traz em seu artigo 94 a controvertida previsão de que a divulgação no PNCP é condição indispensável para a eficácia do contrato e deverá ocorrer no prazo de até dez dias úteis, no caso de contratação direta.

Nos termos do artigo 174, o Portal Nacional de Contratações Públicas é um sítio eletrônico oficial que se destina a viabilizar a divulgação centralizada e obrigatória dos atos exigidos pela Lei. O ponto é que o Portal ainda não foi criado e diante de sua inexistência, as exigências legais de divulgação nele não podem ser atendidas.

Há argumentos jurídicos para que tais exigências sejam contornadas, se se considerar que a publicidade no PNCP pode ser substituída pela publicação em sítios eletrônicos oficiais já existentes2. Porém, trata-se de uma interpretação que, conquanto absolutamente razoável,

constitui afastamento de disposições legais expressas gerando insegurança ao gestor e desestimulando a utilização da dispensa nos formatos da nova lei.

Demais disso, a Advocacia Geral da União recentemente realizou análise jurídica sobre condicionamentos e requisitos para a possibilidade de utilização da Lei 14.133/2021 oportunidade em que entendeu que é a disponibilização do PNCP é condição para utilização da nova lei. Nesse sentido, destaca-se trecho da ementa do Parecer 2/2021/CNMLC/CGU/AGU: “(…) II – A divulgação dos contratos e dos editais no Portal Nacional de Contratações Públicas – PNCP não pode ser substituída pelo DOU, sítio eletrônico do órgão ou outro meio de divulgação, sendo obrigatório, portanto, o PNCP;”.

Além da questão da publicidade por meio do PNCP, outro fator a ser observado é que para se utilizar dos limites previstos pelo art. 75 o gestor deverá adequar o procedimento à Lei 14.133/2021 e que esta, em seu art. 72, disciplinou expressamente a instrução dos processos de dispensa de licitação, visando a aperfeiçoar a governança também nos processos de contratação direta.

O dispositivo elenca documentos que deverão compor o processo, quais sejam: I) documento de formalização de demanda e, se for o caso, estudo técnico preliminar, análise de riscos, termo de referência, projeto básico ou projeto executivo; II – estimativa de despesa, que deverá ser calculada na forma estabelecida no art. 23 da Lei; III – parecer jurídico e pareceres técnicos, se for o caso, que demonstrem o atendimento dos requisitos exigidos; IV – demonstração da compatibilidade da previsão de recursos orçamentários com o compromisso a ser assumido; V – comprovação de que o contratado preenche os requisitos de habilitação e qualificação mínima necessária; VI – razão da escolha do contratado; VII – justificativa de preço; VIII – autorização da autoridade competente.

Poderão ainda compor o processo, de acordo com o art. 72, inciso I, estudos técnicos preliminares, análise de riscos, termo de referência, projeto básico ou projeto executivo. Acerca destes documentos, oportuno observar que a lei não esclarece em que hipóteses seriam cabíveis ou incabíveis, o que dá ensejo à diversas intepretações.

Uma interpretação possível seria no sentido de que o termo de referência será aplicável para bens e serviços, com base no art. 6º, inciso XXIII da lei enquanto os projetos básico e executivo reservam-se às contratações de obras e serviços de engenharia, com base nas definições trazidas pelos incisos XXV e XXVI do referido art. 6º. Estudo técnicos preliminares e análise de riscos, por outro lado, poderão ou não ser produzidos considerando a complexidade da contratação.

De toda sorte, diante da ausência de determinação expressa da lei, possível compreender que a utilização ou não dos estudos técnicos preliminares, análise de riscos, termo de referência, projeto básico ou projeto executivo demandará justificativa ou ao menos um breve esclarecimento da área demandante para a aplicação ou não à determinada contratação.

No que se refere ao valor da contratação, o art. 72 alude à estimativa de despesa (inciso II) e justificativa de preços (inciso VII) dizendo que a estimativa de despesa deverá ser calculada na forma do art. 23. Este artigo, a seu turno estabelece que “o valor previamente estimado da contratação deverá ser compatível com os valores praticados pelo mercado, considerados os preços constantes de bancos de dados públicos e as quantidades a serem contratadas, observadas a potencial economia de escala e as peculiaridades do local de execução do objeto.”

Partindo-se da premissa que os incisos II e VII contemplam conceitos diversos, uma interpretação possível seria de que a estimativa da despesa refere-se à menção do valor estimado obtido a partir da aplicação dos critérios do art. 23 e que a justificativa, por outro lado, refere-se ao detalhamento da metodologia adotada até a obtenção da estimativa.

Quanto aos pareceres técnicos e jurídicos, diante da previsão “se for o caso”, constante do inciso III do art. 72, pode-se considerar que sua exigência dependerá da complexidade do objeto da contratação. No caso do parecer jurídico, inclusive, a própria lei admite sua dispensabilidade, em hipóteses previamente definidas em ato da autoridade jurídica máxima competente, que deverá considerar fatores como o baixo valor e a baixa complexidade da contratação (art. 53, § 5º).

Quanto à demonstração da compatibilidade da previsão de recursos orçamentários com o compromisso a ser assumido (inciso IV), trata-se de demonstrar que o gasto pretendido com a contratação não excede a disponibilidade orçamentária, previsão que atende ao princípio da responsabilidade fiscal, aplicável ao planejamento das compras, conforme dispõe o art. 403.

A adequada formalização do processo de contratação dependerá também do atendimento pelo futuro contratado de requisitos de habilitação e qualificação mínimas, cabendo ao gestor demonstrar no processo a razão de escolha do contratado, a qual deve estar atrelada a sua capacidade técnica e financeira para executar o objeto de acordo com preço razoável segundo as práticas de mercado.

Quanto à autorização para contratação, compreende-se que deverá ocorrer de forma expressa no processo. Ainda, de acordo com a nova instrução normativa sobre a dispensa eletrônica4, o ato de autorização deverá ser divulgado e mantido à disposição do público em sítio eletrônico oficial do órgão ou entidade promotora do procedimento.

Em síntese, a breve análise dos requisitos de formalização dos processos de dispensa permite perceber que, no cenário da nova lei de licitações, mesmo as contratações diretas devem estar amparadas em um criterioso planejamento o que, aliás, é absolutamente coerente em uma lei que erigiu o planejamento a princípio.

Neste contexto, o que se percebe é que a utilização dos novos valores parece estar adiada não apenas até a implementação do PNCP, mas até que o planejamento das contratações direta seja reavaliado e reestruturado de modo a atender às exigências da nova lei. Cabe assim ao gestor,

neste momento, acompanhar a implementação do Portal Nacional de Contratações Públicas (que, aliás, se encontra em pleno andamento) ao tempo em que reavalia os processos de planejamento das dispensas em razão do valor visando a readequar os procedimentos, minimante, ao cenário de governança estrutural trazido pela Lei 14.133/2021.

 

1 O parágrafo sétimo excepciona a duplicação dos limites nos seguintes termos: § 7º Não se aplica o disposto no § 1º deste artigo às contratações de até R$ 8.000,00 (oito mil reais) de serviços de manutenção de veículos automotores de propriedade do órgão ou entidade contratante, incluído o fornecimento de peças.
2 Acerca da possibilidade de aplicação imediata da Lei 14.133/2021, sem a necessidade de implementação do PNCP recomenda-se a leitura do artigo intitulado A aplicação da nova Lei de Licitações prescinde do PNCP, de autoria de Rafael Sérgio de Oliveira, disponível em http://www.novaleilicitacao.com.br/2021/04/29/a-aplicacao-da-nova-lei-de-licitacoes-prescinde-do-pncp/
3 Art. 40. O planejamento de compras deverá considerar a expectativa de consumo anual e observar o seguinte: I – condições de aquisição e pagamento semelhantes às do setor privado; II – processamento por meio de sistema de registro de preços, quando pertinente; III – determinação de unidades e quantidades a serem adquiridas em função de consumo e utilização prováveis, cuja estimativa será obtida, sempre que possível, mediante adequadas técnicas quantitativas, admitido o fornecimento contínuo; IV – condições de guarda e armazenamento que não permitam a deterioração do material; V – atendimento aos princípios: a) da padronização, considerada a compatibilidade de especificações estéticas, técnicas ou de desempenho; b) do parcelamento, quando for tecnicamente viável e economicamente vantajoso; c) da responsabilidade fiscal, mediante a comparação da despesa estimada com a prevista no orçamento. (…)
4 O documento esteve disponível para consulta pública de 11 de maio a 25 de maio de 2021 em https://www.gov.br/participamaisbrasil/nova-in-dispensa-eletronica. A versão definitiva ainda não foi publicada.