EGP Entrevista: História da Administração Pública Brasileira

Caríssimos e caríssimas, a entrevista deste mês aborda uma análise crítica da história da administração pública brasileira.

O professor da Universidade Federal Fluminense, Frederico José Lustosa da Costa, e a professora Cláudia Souza Passador, da Universidade de São Paulo, nos trazem uma reflexão oportuna sobre a historiografia e a evolução da gestão pública nacional.

Ao final, nossos convidados refletem sobre os principais desafios do Estado brasileiro e indicam uma valiosa curadoria de conteúdos para o aprofundamento no assunto.

O trabalho teve a coordenação do prezado Eduardo Paracêncio. Confiram! 

Cláudia Passador – Diante do continuado esforço de resgate do pensamento social brasileiro, na forma de reedições, reinterpretações e estudos críticos de clássicos da matéria, atualizando a “Teoria do Brasil” e superando as descrições e adjetivações simplistas e anacrônicas presentes em determinadas análises, quais são as fragilidades que ainda persistem na historiografia sobre administração pública no país?

Frederico Lustosa – Creio que a reduzida produção historiográfica sobre a administração pública brasileira pouco se beneficiou dos avanços da historiografia ocorridos desde a primeira metade do Século XX. Muito do que se escreveu sobre o assunto desde os anos 1950 ainda se circunscreve naquilo que os franceses denominam de história événementielle. De fato, a nossa história da administração pública esteve imune às mudanças de perspectiva teórico-metodológica introduzidas pela História dos Anais e pela Nova História, negligenciando o aporte das ciências sociais, a incorporação de novos objetos, a adoção de temporalidades múltiplas e o uso de fontes alternativas. A história administrativa continuou a se apegar à narrativa de atos e fatos, valorizando os aspectos episódicos e biográficos e a ação individual de governantes e líderes – monarcas, tiranos, políticos e dirigentes em geral. Ela se valia e ainda se vale das mesmas fontes de documentação escrita, sem se ocupar da estatística descritiva e de outros dados indispensáveis à história serial. Peca ainda pela incapacidade de redefinir seu objeto no sentido de tomá-lo em sua totalidade e apreendê-lo na sua complexidade, enquanto instituição (estruturas), práticas (processos) e representações.

Por outro lado, leituras apressadas de alguns clássicos do pensamento social brasileiro veiculam interpretações simplistas sobre as relações do Estado com a sociedade e sobre as próprias transformações da administração pública. O uso de conceito de patrimonialismo, por exemplo, é francamente estatofóbico, pois aponta para a existência de uma “elite” predatória, incrustada no Estado, que não se identifica com as elites econômicas. No limite, todos os servidores públicos são membros da elite patrimonialista. Além disso, a noção de patrimonialismo é imobilista. Atravessa os séculos sem que nada aconteça. Por isso, todo período monárquico e a República Velha são colocados sob o domínio dos “donos do poder” (que não são ou podem não ser os donos do capital nem os senhores de escravos). São 108 anos de indiferenciação histórica. A interpretação patrimonialista é cega com relação à profissionalização das forças armadas e ao incipiente processo de burocratização da área fazendária e, mais tarde, da diplomacia.

CP – Qual momento você considera o marco do aparecimento do que Max Weber denomina de burocracia, não como modelo prescritivo, mas como modelo analítico-descritivo para construção de um tipo de dominação de fundo racional-legal na história da administração pública no Brasil?

FL – Essa pergunta é interessante porque chama a atenção para o fato que, desde muito cedo, o tipo ideal de dominação racional-legal corporificado pela burocracia tenha sido tomado como um modelo prescritivo, embora as primeiras leituras tratassem mesmo de uma categoria sociológica. Ao que eu saiba, a primeira referência a Weber na literatura sociológica brasileira está em As raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, de 1936. Mas uma análise mais densa da obra de Weber aparece pela primeira vez na Revista do Serviço Público, na resenha assinada por Alberto Guerreiro Ramos, em 1946, da edição em espanhol de Economia e Sociedade, publicada pelo Editora Fondo de Cultura Económica, com tradição de José Medina Echevarría, de 1944. Entretanto, a partir daí, e ao longo de muitos anos, as leituras do conceito de burocracia serviram para informar projetos de modernização administrativa que conferissem maior racionalidade à máquina pública. Acho que a apropriação mais correta e adequada dos conceitos de Weber veio mesmo da sociologia “profissional”, apesar da influência deturpadora de Talcott Parsons em alguns círculos funcionalistas. Eu não saberia identificar um marco na Sociologia brasileira para a apropriação da noção de burocracia, mas Gláucia Villas Bôas fez um balanço da “recepção controversa” de Weber no Brasil. No campo da Administração, eu citaria dois bons exemplos – Administração e Estratégia do Desenvolvimento (mais tarde republicado como Administração e contexto brasileiro), de Alberto Guerreiro Ramos, de 1966 e 1983, respectivamente, e Burocracia e Ideologia, de Maurício Tragtemberg, de 1977. Este último autor também organizou o volume sobre Weber da coleção Os Economistas, da Abril Cultural, em que apresenta vários textos “políticos” de Weber, em que expõe um ponto de vista crítico com relação à burocracia.

CP – Como analisar no Brasil a convivência de um excesso de formalização, considerada muitas vezes como uma condição equivocada ou disfuncional da burocracia e, ao mesmo tempo, com o fetiche pela formalização, caracterizada pela despersonalização da ação do gestor público?

FL – Acho que as duas questões – formalização e despersonalização – são complementares, mas podem ser tratadas separadamente. A formalização é intrínseca à burocracia, que requer o registro dos procedimentos e comunicações, mas, quando exacerbada, a formalização se converte em formalismo, papelório.

A impessoalidade também é constitutiva da burocracia. Ela desconhece afetividades. Se a lei é universal, ela não pode individualizar situações. Sua aplicação é impessoal, sem ódio nem preconceitos. Em outras palavras, a burocracia não pode levar em conta a posição do demandante para premiar ou sancionar. A impessoalidade supõe o horror ao privilégio e à discriminação. Se a lei é universal, não pode individualizar situações.

Por outro lado, a impessoalidade também não pode ser levada às últimas consequências, sem deixar margem à compreensão das assimetrias sociais (discriminatórias) e para a singularidade do caso particular. Os estudos sobre burocracia do nível da rua mostram o quanto a ação dos agentes públicos pode ser seletiva e discriminatória. Assim, o excesso de “impessoalidade” negativa pode ser mitigado pela discricionariedade orientada para a seletividade positiva, para a superação da pouca representatividade da burocracia, não como uma abertura ao privilégio, mas como garantia de universalidade, isonomia e equanimidade.

CP – Ao retomar sua produção científica, você aponta que a invenção da administração pública no Brasil é um processo de construção e atualização de representações do aparato estatal e de sua interação com a sociedade alimentado por narrativas históricas e imagens simbólicas criadas por intelectuais, homens públicos, tecnocratas e cronistas. E defende que a invenção também se nutre da compreensão das influências das matrizes políticas, econômicas, sociais, culturais e jurídicas das nossas atuais instituições e práticas administrativas, além da conexão de sentidos entre estruturas, acontecimentos e representações. Nessa direção, como resguardar o futuro do Estado de Direito no país e o que deveria ser reinventado?

FL – Ao longo dos anos, minha reflexão sobre a experiência social tem me mostrado que os processos de mudanças obedecem a um ciclo não linear e não determinístico que correlaciona instituições, práticas e representações. Novas instituições ensejam práticas sociais diferentes que podem levar os indivíduos a representarem o mundo de outra maneira. Novas práticas podem requerer diferentes regulações. Outras representações suscitam a emergência de novas práticas e instituições.

Quando falo em invenção da administração pública, coloco em primeiro plano as representações que construímos sobre o Estado e suas relações com a sociedade. E essas representações são informadas por narrativas históricas e imagens simbólicas alimentadas pela ciência, pelas artes, pela mídia, pelas redes sociais e pelas interações pessoais. Não podem ser estabelecidas por decreto. Mudam lentamente ao saber de influxos incontroláveis e imemoriais abstrações.

Por tudo isso, o caminho mais seguro e eficaz, sem garantida de sucesso, contudo, é o da mudança institucional, que, evidentemente, precisa ter algum enraizamento nas práticas e representações vigentes no seio da sociedade. O Estado de direito, para preservar a plenitude democrática, precisa conviver com instituições majoritárias e contramajoritárias, que mantenham o equilíbrio entre instituições perenes e mudanças necessárias. É preciso mudar, sem desfigurar o pacto social que fundamenta a ordem social e democrática igualitária que tem legitimidade constituinte. Por isso, além das chamadas cláusulas pétreas, temos as instituições contramajoritárias que impediram que houvesse um desmantelamento ainda maior das políticas públicas durante o governo Bolsonaro. É preciso garantir que as instituições democráticas persistam e reinventar práticas sociais que perpetuam as desigualdades e favorecem a discriminação.

CP – O programa de governo apresentado ao país pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2002 estabelecia como um de seus principais compromissos o de formular e implementar uma Política Nacional de Desenvolvimento Regional. O Plano Plurianual – PPA 2004-2007 apresentado ao Congresso Nacional do Brasil pelo Executivo apresentava como um de seus principais desafios “Reduzir as desigualdades regionais e intrarregionais com integração das múltiplas escalas espaciais (nacional, macrorregional, sub-regional e local), valorizando as identidades e diversidades culturais e estimulando a participação da sociedade no desenvolvimento local. Depois de 20 anos e mudanças de governos, como você analisa as ações desenvolvidas e seus resultados até o momento e avalia a operacionalização deste tipo de programa na implicação ou não em uma mudança de paradigma de gestão na administração pública?

FL – Essa pergunta chama a atenção para um tema que fez parte da minha agenda de pesquisa logo no início da minha carreira como pesquisador, tendo sido objeto de minha dissertação de mestrado, já passados tantos anos. Eu o revistei algumas vezes, embora sem a oportunidade de aprofundá-lo devidamente.

Em face disso, eu não tenho condições de fazer uma avaliação adequada das ações desenvolvidas ao longo dos últimos 20 anos. Mas é claro que continua sendo muito importante “reduzir as desigualdades regionais e intrarregionais com integração das múltiplas escalas espaciais (nacional, macrorregional, sub-regional e local), valorizando as identidades e diversidades culturais e estimulando a participação da sociedade no desenvolvimento local”. Resta saber se isso tem acontecido na intensidade devida. Eu examino essas questões do ponto de vista do Nordeste, região onde eu nasci e que foi meu primeiro objeto de estudo. Dessa perspectiva, penso que, desde as iniciativas pioneiras relacionadas com a criação da SUDENE, os projetos de desenvolvimento regional têm sido muito tímidos. Um marco importante foi a transposição do São Francisco, mas ela ainda não foi devidamente acompanhada de um grande projeto de revitalização do rio e de todo o vale. Sem isso, não há irrigação viável a longo prazo. Falta uma ação integrada do governo federal e dos governos estaduais para a implantação de ações estruturantes com projetos para o Século XXI. Refinarias, siderúrgicas, portos e ferrovias podem ser importantes e necessários em determinados contextos, mas são projetos do início do Século XX. Mesmo a energia eólica do Século XXI precisa ser repensada pelos danos causados ao meio ambiente e às populações locais. Há uma discussão sobre hidrogênio verde, mas ainda é muito incipiente. Em todo caso, onde entra a “participação da sociedade no desenvolvimento local”?

CP – Nas últimas décadas, a necessidade de elevação da capacidade de gestão por parte dos governos tem sido alvo de constantes debates. Isso reflete um conjunto de demandas que têm sido postas pela sociedade civil no que concerne ao seu anseio pela efetividade da ação estatal. De um lado, existem aqueles que creditam à transposição de práticas gerenciais adotadas no setor privado como o elemento factível e portador de respostas aos problemas do setor público. De outro lado, aqueles que salientam a importância de serem distinguidas as diferenças entre esses contextos, recordando que o setor público não deve apenas gerir a eficiência e a eficácia, mas também, a equidade que lhe é inerente. Está colocado o debate entre o gerencialismo e a tentativa de encontrar soluções alternativas, mais adequadas ao contexto de um novo padrão de desenvolvimento. Nesse contexto e incorporando nossas heranças coloniais, como pensar o papel do gestor público pautado por elementos de ética, discricionariedade, controle e transparência?

FL – Eu sempre me coloquei entre os críticos do gerencialismo e entre aqueles que estabelecem uma clara diferença entre os contextos público e privado. Toda a minha formação foi orientada no sentido de compreender a administração pública como uma disciplina autônoma, com objeto próprio, bem diferenciado do da administração empresarial. Ela se situa no carrefour de outras disciplinas, inclusive da Administração Geral, mas não se confunde com ela. Tem técnicas, métodos e instrumentos comuns em determinadas áreas, mas tem objeto próprio e sua compreensão e aplicação requerem estratégias e práticas diferenciadas.

A administração pública trata do interesse público, o interesse de todos; a administração privada trata do resultado, o interesse do acionista-controlador. A administração pública interage com cidadãos-eleitores, titulares de direitos e patrões do Estado; a administração privada trata com clientes-consumidores (que podem escolher novos fornecedores).

Quanto ao papel do gestor público, acho que os elementos indicados – ética, discricionariedade, controle e transparência – e as maneiras como devem ser tratados dependem muito dos processos de recrutamento, seleção e treinamento dos servidores públicos em geral e dos dirigentes em particular. Os concursos públicos e cursos de formação não se ocupam desses temas em profundidade, atendo-se a questões legais e regulamentares. Discutir ética não é analisar o código de ética do servidor público federal. Debater a discricionariedade depende muito da compreensão sobre os direitos humanos, a representatividade da burocracia e o papel dos burocratas do nível da rua. Compreender o significado do controle na administração pública não é assumir uma atitude punitivista, disposta a criminalizar a política ou mesmo a ação dos servidores públicos. O controle serve, antes de tudo, para prevenir, mitigar e corrigir malfeitos. Não é uma polícia administrativa a serviço das vestais do Ministério Público ou do Judiciário, instituições que, nem de longe, têm vocação persecutória.

CP – Mesmo com todos os problemas econômicos e sociais presentes na América Latina, o Brasil nos indica uma sociedade civil cada vez mais articulada e ativa que exige uma real participação no desenho das políticas públicas, na sua implementação, transparência, controle social, aprofundando a descentralização do Estado. Esta combinação implica em uma situação muito delicada, com a busca de soluções através da democracia e de importantes possibilidades de ação para políticas renovadoras. Este debate também chama à atenção para a ampliação das responsabilidades dos municípios, com programas inovadores de alcance local e regional. As tendências de mudança sugerem a existência de um movimento no sentido de superação de algumas características centrais da gestão pública brasileira, como: fragmentação institucional, atuação setorial e clientelismo. Entretanto, é um movimento ainda difuso. Nesta seara, como analisar a construção institucional das políticas públicas e a capacidade de inovação no que diz respeito à cidadania e participação?

FL – Desde os anos 1970, vivemos no Brasil um processo de fortalecimento dos movimentos sociais e ampliação de espaços de participação. Algumas dessas conquistas foram inscritas na Constituição de 1988 e, ao longo dos anos seguintes, foram se consolidando em novas instituições – leis, conselhos, conferências, orçamentos e planos participativos.

Entretanto, creio que, nos últimos dez anos, temos vivido um movimento na direção contrária. Desde as jornadas de junho de 2013, houve a emergência de movimentos de direita que vicejavam sub-repticiamente há algum tempo. De início, tratava-se de uma pauta difusa que se alimentava de insatisfações com serviços públicos e de sentimentos anticorrupção já existentes. Mas acabaram institucionalizando em grupos liberais e conservadores como o MBL (Movimento Brasil Livre) e o Vem pra rua, sem compromisso com a democracia.

Por outro lado, movimentos sociais tradicionais, vinculados a questões partidárias, lutas sindicais mais amplas ou reivindicações de moradia acabaram perdendo protagonismo. Ganharam destaque movimentos identitários, vinculados a lutas de negros, homossexuais (ou população LGBTQIA+), mulheres e outras minorias ou grupos vulneráveis. A questão religiosa também ganhou relevância, impondo distanciamento entre católicos, evangélicos, religiões de matriz africana e pessoas sem religião. A luta das bandeiras majoritárias dos movimentos sociais acabou perdendo espaço para toda essa diversidade.

Essa dispersão dos movimentos sociais não contribui em nada para uma luta concertada pela superação dos problemas identificados na pergunta – fragmentação institucional, atuação setorial e clientelismo. É preciso identificar novas estratégias de mobilização de grupos emergentes na sociedade que não mais se sensibilizam com as promessas que no passado granjeavam a adesão de vastos segmentos de trabalhadores, desempregados e subempregados. Como atrair para a luta política o exército de trabalhadores “uberizados”? Quais canais podem ser criados para a sua representação? Como discutir a questão da segurança pública sem o apelo à violência policial e ao endurecimento das penas? Como separar novamente a política da religião? É hora de reinventar a política e as instituições participativas. Mas está faltando imaginação nos meios políticos e intelectuais.

CP – Vivemos hoje em face da `erosão do contrato social´ e, desta forma, surge à emergência de um novo paradigma de relações entre a sociedade e o Estado, que se apresenta pautado nas propostas de participação política da população, e na busca viver com expectativas bem fundadas sobre a segurança, justiça social e bem-estar. Habermas ressalta, por exemplo, que as injustas condições sociais de vida da sociedade capitalista devem ser compensadas com a distribuição justa de bens coletivos. Porém, tais direitos estabelecidos ou conquistas ainda geram discussões e a polarização política da contemporaneidade, especialmente no Brasil. Diante disso, como ressignificar a democracia?

FL – É claro que eu percebo os sinais de erosão da democracia nas atitudes de lideranças desagregadoras e na reação das instituições democráticas. E temos que criar salvaguardas nesse sentido. Como conter aqueles que se insurgem, a partir de dentro, contra as instituições democráticas?

Entretanto, do meu ponto de vista, a questão é mais complexa e profunda. Trata-se de estabelecer como a democracia é capaz de lidar com o conflito distributivo imanente à sociedade capitalista moderna, como é capaz de regular as transferências de renda dentro da sociedade.

Um dos pilares da social-democracia moderna é a previdência social, que vem se organizando desde o final do Século XIX. Baseada num sistema de contribuição sobre a folha de salários e repartição simples (da “mão para a boca!”), ela é simplesmente inviável. Nenhum sistema de contribuições sobre a folha de salários da população economicamente ativa de qualquer país, ainda que sob pleno emprego, é capaz de sustentar o pagamento dos benefícios já assumidos pelo sistema previdenciário. Já se sabe que mais de 60% das mulheres que nascem hoje no hemisfério norte viverão mais de 100 anos. Ainda que só comecem a trabalhar aos 25 anos e continuem a contribuir até os 65 anos (quarenta anos de contribuição com cerca de 20% da remuneração), elas viverão cerca de 40 anos recebendo em torno de 70% da remuneração atual. Essa conta não fecha. Esse modelo é inviável. Só pode ser salvo se adotarmos uma política de trabalho forçado e morte compulsória, de sorte que os trabalhadores possam morrer no dia da aposentadoria.

Essa questão mostra como a discussão sobre democracia não pode ser desvinculada de outras questões importantes. Se as pessoas não compreenderem isso, não poderão lutar por democracia plena.                           

CP – A administração pública convive com modismos de termos que se tornam geralmente desafios. Diante da perspectiva de uma abordagem multidisciplinar, transversal, de alcance tático-gerencial e institucional da administração pública brasileira, que caminhos você vislumbra para o conceito de capacidade estatal?

FL – Acho importante chamar a atenção para os modismos. Muitos temas antigos aparecem transfigurados em novas categorias. E muita gente embarca nos modismos. Como sou mais antigo, logo lembro das velhas fontes de ideias que aparecem por aí com novas. O caso mais visível é o da chamada gestão por resultados. Esse “modelo de gestão”, que virou moda nos anos 1990, já era muito difundido desde os anos 1950, sem que hoje em dia se faça qualquer referência às experiências da GE e ao livro pioneiro de Peter Drucker, sobre a Administração por objetivos. Existem outros exemplos como o chamado The Whole of Government Approach, que nada mais é do que a aplicação da noção já utilizada entre nós de Gestão Integrada.

No caso das chamadas capacidades estatais, não creio que seja um mero modismo. Trata-se de uma questão perene e importante que precisa ser discutida. As capacidades estatais dizem respeito às efetivas possibilidades de as instituições governamentais alcançarem seus objetivos por meio de regulação e de políticas públicas, quer dizer, as capacidades de identificação de problemas, formulação de soluções, de tomada de decisão, de execução de ações e de entrega de resultados. Elas estão relacionadas com arranjos institucionais que favorecem a governança, pois contribuem para a qualidade do governo, decorrente da disponibilidade de recursos e da necessária autonomia e profissionalização da burocracia.

O desafio é saber como aumentar, conservar ou recuperar as capacidades estatais. Os autores que discutem esse tema parecem sugerir que em períodos autoritários há um aumento nas capacidades estatais, talvez em função da possibilidade de simplificação dos arranjos institucionais necessários à implementação das políticas públicas e ao controle estrito exercido sobre a burocracia.

De fato, parece que ao longo dos anos, depois da redemocratização, o Estado brasileiro foi perdendo capacidade para implementar programas e projetos de grande complexidade. Basta citar a construção da ferrovia Norte-Sul, a transposição do São Francisco, os projetos do complexo GasLub (antigo COMPERJ) da refinaria Abreu e Lima. Não se trata apenas de capacidade financeira. As capacidades estatais que construíram a Ponte Rio-Niterói, que acaba de completar 50 anos, não conseguem erguer uma ciclovia que se mantenha de pé à beira-mar.

CP – Para finalizar, qual é a sua sugestão de links, vídeos, livros e podcast para quem quer saber mais sobre a história da gestão pública brasileira seja no que se refere à perspectiva crítica da visão evolucionista da historiografia ou da abordagem culturalista do pensamento social?

FL – Como ainda há pouca gente escrevendo sobre o tema, eu fico um pouco constrangido de indicar meus próprios trabalhos como referências para as discussões sobre a história da administração pública no Brasil. Mas para não deixar os leitores frustrados, vou fazer algumas indicações.

Sobre a história da administração pública:

Lustosa da Costa, Frederico; Lustosa da Costa, Elza Marinho. Nova história da administração pública brasileira – pressupostos teóricos e fontes alternativos. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, v. 50, n. 2, p. 215-236, mar./abr. 2016.

https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/60843/59056

Lustosa da Costa, Frederico; Zamot, Fuad (Orgs.). Brasil: 200 anos de Estado, 200 anos de administração pública. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.

Lustosa da Costa, Frederico. Preâmbulo a uma nova história da administração pública brasileira. In: Lustosa da Costa, Frederico; Zamot, Fuad (Orgs.). Brasil: 200 anos de Estado, 200 anos de administração pública. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.

https://arquivo.anpad.org.br/diversos/down_zips/38/APS-A3136.pdf

Lustosa da Costa, Frederico. História, narrativa e representações da administração pública brasileira. Rev. Serv. Público Brasília 69, edição especial. Repensando o Estado Brasileiro. 31-52 dez 2018. https://doi.org/10.21874/rsp.v69i0.3582

https://revista.enap.gov.br/index.php/RSP/article/view/3582/2048

Lustosa da Costa, Frederico; O’Donnel, Júlia; Mendes, Pedro Barbosa. 1808-2008 – Por uma nova história da administração pública brasileira. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, IHGB, ano 170, n. 443, p. 287-312, abr./jun. 2009.

https://www.ihgb.org.br/revista-eletronica/artigos-443/item/108465-1808-2008-por-uma-nova-historia-da-administracao-publica-brasileira.html

Lustosa da Costa, Frederico. 200 anos de Estado, 200 anos de administração pública, 200 anos de reformas. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, v. 61, n. 3, p. 269-286, jul.-set. 2008.

https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/6656/5240

Sobre representações das relações Estado-Sociedade:

Lustosa da Costa, F. (2018). História, narrativa e representações da administração pública brasileira. Revista Do Serviço Público69, 31 – 52. https://doi.org/10.21874/rsp.v69i0.3582

https://revista.enap.gov.br/index.php/RSP/article/view/3582/2048

Lustosa da Costa, Frederico. Relações Estado-sociedade no Brasil: representações para uso de reformadores. Dados, Rio de Janeiro, v. 52, n. 1, p. 161-199, mar. 2009. Disponível em:  

https://www.scielo.br/j/dados/a/hnK54YyrQC6DDzkNNQ8BSGD/?lang=pt   http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52582009000100005. Acesso em: 16 mai. 2018.

Lustosa da Costa, Frederico. Estado, reforma do Estado e democracia no Brasil da Nova República. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, v. 32, n. 4, p. 71-82, 1998.

https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/7783/6383

Vieira, Clóvis Abreu; Lustosa da Costa; Frederico; Barbosa, Lázaro André de Oliveira. O jeitinho brasileiro como um recurso de poder.

Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, v. 16, n. 2, p. 5-31, abr./jun. 1982.

https://periodicos.fgv.br/rap/article/view/11440/10392

Vídeos:

História da Administração Pública:

https://www.youtube.com/watch?v=efSuABbR7dE

https://www.youtube.com/watch?v=cOeJjleNijM

Representações:

https://www.youtube.com/watch?v=Hrh8iSR4BXc

https://www.youtube.com/watch?v=EuxnmXEN064

https://www.youtube.com/watch?v=NjROTmRQChI

Frederico José Lustosa da Costa – Professor do Programa de Pós-graduação em Administração (PPGAd) da Universidade Federal Fluminense e membro da Academia Brasileira de Ciências da Administração. Foi professor Titular da Escola Brasileira de Adminstração Pública e de Empresas (EBAPE) da Fundação Getulio Vargas (DFGV) e professor visitante do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE/IUL, Lisboa) e da École Superieur de Commerce de Paris (ESCP Europe). Graduado como Bacharel em Economia pela Universidade Federal do Ceará (UFC, 1979), em Fortaleza, é Mestre em Administração Pública pela EBAPE/FGV, no Rio de Janeiro (1990), e em Comunicação Política (DEA) pela Universidade Paris I (Pantheon-Sorbonne), em Paris (1994), reconhecido como Mestrado em Ciência Política pela UnB (2009), e Doutor em Gestão, pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE/IUL), em Lisboa, Portugal (2007), também reconhecido pela Universidade de Brasília (UnB, 2010), neste caso como Doutorado em Administração. É autor dos livros “A Persistência da Desigualdade” (BNB,1992), “Plano de Ação da Bacia Cultural do Araripe” (Secult-CE, 2006), “Reforma do Estado e Contexto brasileiro” (Editora da FGV, 2010) e co-autor de “Reforma do Estado e Cidadania: o contexto Maranhão” (Edições ISAE Amazônia, 2010), organizador de Política e Gestão Cultural: perspectivas Brasil e França” (Editora UFBA, 2013), co-organizador dos livros “Brasil: 200 anos de Estado, 200 anos de Administração Pública” (Editora da FGV, 2010) e “Rio de Janeiro: uma cidade, muitas capitais” (Editora da FGV, 2010). Contato: [email protected]

Cláudia Souza Passador – Formada em Ciências Sociais USP (1990) e Comunicação Social Metodista (1991), mestrado em Administração Pública e Governo FGV/EAESP (1998), doutorado em Educação USP (2003) e Livre-Docência em Administração Pública FEARP/USP (2012). Professora Titular em Administração Pública do Departamento de Administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto da USP. Experiência na área de Administração Pública, com ênfase em avaliação de políticas públicas. Coordenadora do Centro de Estudos em Gestão e Políticas Públicas Contemporâneas do Instituto de Estudos Avançados da USP – Polo Ribeirão Preto (GPUBLIC/IEA/USP). Professora Catedrática do Prêmio Cátedras do Desenvolvimento do IPEA (2012) e do Prêmio Cátedra Brasil da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP/2019. Prêmio Open Box da Ciência (2020): Uma das 50 mulheres protagonistas na área de ciências sociais aplicados no Brasil (2020). Prefeita do Campus da USP de Ribeirão Preto (2016-2020). Pesquisadora Sênior da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO/ONU). Representante do Brasil na Rede Latino Americana de Administração Pública (LAGPA/IISA). Articulista do Jornal da USP. Pesquisadora do Portulans Institute/Oxford University); e do Centro de Colaboração Interinstitucional de Inteligência Artificial Aplicada às Políticas Públicas (CIAP/chatPP). Bolsista Produtividade CNPq. Contato: [email protected]